Sob a Marquise, na Cidade Nova

dezembro 28, 2011 at 1:36 pm (10 minutos)

Não tenho terra, permitam-me que nesta chuva eu diga. Mas é um brado parcial, este meu. Como é também a ocupação do solo – alguns têm, outros, não. E sempre há um terreno vazio por aí. Chegaram (o sujeito, por ora, fica indeterminado) antes, subiram a serra, fincaram os marcos, disseram: “isto é meu”. Bestializados, acreditamos nisto até hoje. Hoje, apartamentos vazios por toda esta cidade. Mereceriam ser mapeados, enumerados e colocados gratuitamente à disposição, em listas impressas em letras garrafais e espalhadas por todos os lambe-lambe possíveis.

A cidade, esta em particular, é um falta-e-sobra espaço de enlouquecer qualquer cristão.

Agora, por exemplo, tem gente demais aqui. Estamos todos apertados sob a marquise, compenetrados observando a enxurrada. Agradecendo às bocas-de-lobo que, mesmo cheias de lixo e prestes a entupir, escoam a àgua que poderia subir pra cá e nos afogar.

  • É problema de drenagem. Eu já avisei, mas eles nunca vêm pressas bandas. Já fiz esse serviço quando era moço e sei se a coisa está mal feita. Pra consertar agora vai ser osso. Pra começar tem que quebrar tudo.

“Eu”, no caso, é o Januário, o atarracado zelador de nosso prédio. Não tem o hábito de conversar, já percebi: apenas constata e nos dá o privilégio de presenciar seus diagnósticos. Sabendo disso, confere uma ar escolástico a cada declaração, seja em relação ao aumento do IPTU, os jogos da Portuguesa (seu time, para o qual torce com distância comedida) ou aos novos inquilinos que chegaram há pouco.

“Eles”, por sua vez, são aqueles genéricos funcionários do governo municipal, contra os quais vociferamos toda vez que algum problema irresoluto aparece. Como se sabe, ali reside a culpa, que o imaginário lhes atribui mesmo que a burocracia não o faça.

Quando adicionamos esta culpa tácita, derrota anterior ao próprio jogo, ao inabalável tom de Januário, sabe-se que nada mais há a se discutir. Concordamos sob a marquise, indignados em cantilena, a respiração suspensa de quem precisa se jogar na babilônia e não consegue – devido à inépcia de outrem, para quem um dia ainda vai sobrar porrada.

Acabamos de alugar o apartamento. É caro e minúsculo. Espaço: está perto do metrô (não à beira da praia ou à boca da mata virgem). Tempo: três anos antes da Copa. Aí, a gente se deu mal. E o contrato é por 30 meses.

Foi o que a D. Terezinha me avisou quando viemos olhar o apartamento. “Veja bem, meu filho!”. À época de nossas visitas para fechar a locação, nos perseguia na saída do prédio, avisando que, apesar dela, a vizinhança era esquisita, os condôminos irresponsáveis, que o “nível estava baixando” por ali. “Já procuraram em Perdizes ou em Moema?” Além de inusitada, sua insistência não disfarçava que a decadência não estava restrita ao prédio, impregnando nossa futura vizinha também.

Lembro-me disto bem no momento em que suas ancas fartas me comprimem lateralmente. O espaço sob a marquise comporta pouca gente. Ao lado de D. Terezinha, torna-se uma impossibilidade física e ética. Sem perder a gentileza e o respeito – afinal, é uma madama vetusta – tento não permitir que colonize toda a região, estabelecendo com diplomacia as zonas de fronteira. Sua voz fina e rouca me incomoda. Não quero que ela abra a boca, por isso, modero a disputa.

Em vão. D. Terezinha fala muito. Talvez formada no mesmo instituto de retórica que Januário, adora sínteses de efeito. Mas, para alcançá-las, infelizmente depende de adjetivos e interjeições a granel, encaixadas em rajadas desconcertantes, que não cessam. O interlocutor fica pasmo, não há brecha – entre as frases, desesperadas tomadas de fôlego anunciam não o término, mas a continuidade da ladainha. Por sua natureza torrencial, D. Terezinha é capaz de atrair ou repelir gente – é um campo magnético. Januário, por demais concreto, estaria mais identificado com metáforas na seara da engenharia.

Neste instante, oportunidade rara, D. Terezinha consegue fustigá-lo:

    • Não adianta ficar chorando pitanga. Você sabe como é, né, Januário? Não adianta. (Respiração arfante). Eu não devia ter saído de casa. Olha esta calçada! Isso não é responsabilidade do condomínio? Tá toda afundada, fica cheia de água. Essa água preta e a gente pisando. (Arfa, arfa). Ai que nojo, pode estar misturada com xixi de cachorro, gato, e a gente pegar toxoplasmose, que nem aconteceu com aquele povo quando choveu lá em Santa Catarina. Vocês não viram na TV daquela vez? (Língua de fora, arfando: muita gente em volta) Ifff, tem rachadura na parede do prédio também, dá pra ver a água escorrendo mesmo com a gente aqui embaixo!

Ao contrário de nossa situação, recentes e não-proprietários, Terezinha mora aqui desde sempre. Herdou o apartamento através de um mecanismo genealógico tortuoso, que insiste em explicar a todos os neófitos, descrevendo em detalhes heranças, inventários, conflitos de família. A família é paulista “desde os bandeirantes” e aí o papo ganha uma certa empáfia, que incomoda principalmente o Isvandilson, nosso único vizinho no último andar, . “A senhora deveria tatuar a bandeira no bíceps, ou dar aos netos esses nomes tipo Anhagabaú, Piratininga ou Itaquaquecetuba, pra demonstrar orgulho”, ele disse uma vez, num encontro tenso no começo da escada, em que por qualquer motivo já começava louvar a “locomotiva do Brasil”.

O Isvandilson é um punk hoje velho, que veio de Brasília no começo dos anos 80. Lá ele já se identificava com o visual, a música, as ideias – chegou em São Paulo apenas para confirmar. E esta foi sua maior alegria durante mais de 20 anos por aqui. Durante este tempo aprendeu a dizer as coisas na cara e na lata, por prazer e por dever. Atualmente, mais por prazer.

Não trabalha mais: vive de um precoce aposentadoria por invalidez (“mixaria da porra”) e da ajuda de um filho, que lhe envia dinheiro. O filho mora em Itapevi, trabalha numa loja de sapatos perto da São Bento. Anos atrás, tiveram “uma conversa franca”: disse que não queria o jovem sob o mesmo teto que ele, embora gostasse dele “pra caralho”. E mordeu: “eu preciso que você me dê uma grana de vez em quando, pois eu tô fodido. A vida me fodeu legal.” O “de vez em quando” virou mensal, e o garoto não reclama.

Isvandilson, ao contrário, esbraveja e impreca.

    • Se não fosse essa merda de hérnia nas costas, eu mesmo quebrava a calçada e fazia outra. Mas daí era pra parar de pagar este condomínio de vez, por que parece imposto do governo: suga, suga, e não tem retorno.

E acende um cigarro vagabundo.

      • Pôôôôô… – reclama a geral, tentando amparar-se em recente lei municipal anti-tabagista.

Em vão. O espaço é minúsculo e minhas narinas estão coladas ao Isvandilson. Mas não acho ruim, até vou com a cara dele. Meus ouvidos, por sua vez, colados ao celular do Maikel, que se prepara para o primeiro dia como motoboy na cidade. O toque do aparelho é um funk, Mr. Carta com grave estourado, no último volume. Tomo um susto, enquanto ele já atende: “Tô tentando sair, mas tá tudo parado, chefe. Aqui, na Jabaquara, tudo. Não tem nem como tirar a moto da garagem do prédio.”

O chefe berra no outro lado da linha. Não adianta. Nada se move. Maikel chateia-se um pouco, mas o motivo é outro. Baixaram (o “eles” desta vez, refere-se à vereança da cidade) uma lei que proíbe carona na garupa, e ele já tinha combinado de no fim de tarde tomar uma cerveja com a Keitilin, sua namorada, pra comemorar o trampo. Mas o chefe, aproveitando sua condição de mandatário, via telefone descasca-lhe ordens e reprimendas, avisando que a polícia está de olho e prele “não carregar nada além dos pacotes que eu mandar, ouviu?”

O Maikel tosse com a fumaça do cigarro e desliga o celular – o chefe já se desinteressara dele. Boa-praça e inexpressivo, mora com a mãe convalescente de erisipela no único apartamento térreo. Não se incomoda com os outros em volta. Apenas baixa os olhos e confere uma ou outra função do celular, que correra para comprar em 12 vezes ao saber que tinha um trabalho. Vestido com roupa de chuva plastificada e negra, típica dos motoqueiros, não demonstra angústia, satisfação ou raiva, apenas uma espécie vaga de complacência, com a qual divisa sua touchscreen – como se ali uma paisagem inteira se consolidasse. Como se o menu do seu smartphone lhe tragasse como o cigarro traga Isvandilson, a chatice traga D. Terezinha, a técnica traga Januário. Mas, ao contrário destes, Maikel conseguia deixar-se absorver numa paz que é também vazio. Mais do que com os outros que nos circundavam, naquele momento eu me incomodava mais com ele, por não saber como atingi-lo – por sua impassividade mesmo quando comprimido sob a marquise, via telefone, no trânsito daqui a pouco. Talvez escutando meus pensamentos, ele coloca o fone de ouvido e some de vez sob o capuz.

2 Comentários

  1. Caue Dietrich said,

    faz tempo que não converso contigo e sinto tua falta, rapaz! faz um ano que vim pra essa cidade, mas é bom pelo menos acompanhar-te por aqui. abração-e-bão-são-são-paulo

  2. Fernando Boppré said,

    Crônica com gosto de chuva que se utiliza da secura dos habitantes da metrópole que há muito se esqueceu que a vida é calmaria e despretensão. Isvandilson é uma voz doce (apesar da aparência desvairada) em meio ao estabelecido. Adorei sua escrita. Forte abraço,
    Fernando Boppré.

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