Sweat Shop

setembro 19, 2011 at 10:59 am (10 minutos) ()

Miúda, a chinesa cantarola com voz estranhamente grave. Embora o rumor da manufatura sob o chão seja enorme – o porão tomado por máquinas de costurar, bordar, capazes de overlock rapidíssimo e outras façanhas – ela teima em relembrar tons da infância em casa. Mexe os lábios e sente o diafragma. Chamaria a atenção, se alguém se dignasse a levantar a cabeça. Jornada intensa, todos ali afundam o olhar nas operações que as mãos devem realizar com destreza. Caso contrário, o bicho pega.

Há também bolivianos, angolanos, somalis e brasileiros. A chinesa não calcula as horas, encalacradas apenas entre o trabalho e o sono. Há pouca luz, o idioma lá fora é estranho. Dentro, uma babel. Moram ali mesmo, num depósito adaptado ao lado, que já foi mais sujo. O dinheiro aqui é pouco. Pra ela, que é de lá, vale bem mais que o cansaço.

É jovem, pálida e tem varizes. A chinesa está apaixonada. Borda casacos de tecido sintéticos, destes que cortam o vento, semi-esportivos, vendidos aos montes em avenidas cheias de gente. Qualquer cidade de médio porte tem uma delas, visto que o mundo demanda. Mais especificamente, no atual panorama da divisão do trabalho, a chinesa está responsável por imprimir o slogan “Catch Tha Mouse” nas costas dos casacos, de cor negra e gola/mangas vermelhas. Logo abaixo da frase a estampa de um homem musculoso, dragão tatuado no peito desnudo, braços cruzados e luvas de lutador, olhar assassino.

Uma flor enfeita seu rosto. Roxa e amarela, já prestes a secar. A chinesa saiu estes dias e colheu duas ou três, por brincadeira. Está apaixonada por um brasileiro, vizinho de fileira na manufatura têxtil subterrânea. Não entende bem o que fala, ela que do português apenas maneja alguns verbos nos infinitivo e numerais ligados à contagem do salário. Decorou, há pouco, a quantidade mensal de horas trabalhadas: “quatlo-centos”, sorriu para o espelho ao conseguir pronunciar pela primeira vez.

O brasileiro se mexe calmo, parece conduzir a vida com alguma elegância. Magro, moreno, sobrancelhas grossas, antes das têmporas talhadas com precisão. Poderia ser um meio-campista do futebol nos anos 50. Vai com calma, senta-se ereto no banquinho defronte à máquina, antes de começar analisa bem a feição de todos que trabalham a seu lado, suspira bem de leve e se concentra. Concentra-se: não se prostra. Recebe resignado o resultado do fim do mês, sempre desconfiando de seus compatriotas patrões. Ama a vida, percebe-se quando ao fim do dia sobe os degraus do porão.

Todavia, ignora a chinesa. Parece andar noutro plano, ali no porão. Ela, que desajeitada meneia os cabelos quando o vê passar para o café. E sofre. Perde a atenção.

O contramestre, ele sim já percebeu. Boliviano, bufa ao seu lado. Quer resultados. Há portos para abastecer. A chinesa, nervosa, avermelha-se. Confunde as palavras na cabeça, quando pensa no que dizer ao amado. O contramestre passa-lhe rente ao cotovelo. A máquina escreve: “C-A-T-C-H”… Daqui a pouco é o intervalo. Hoje é sexta-feira. São 400 horas/mês. Não consegue fazer as contas na cabeça: haverá ou não folga no sábado? É quase verão.

“H-A-T”…, vai errado o artigo definido.

(O contramestre, quando dorme, sonha com seu próprio porão).

“No, no lo hagas así!”, berra numa língua que ali aprendeu-se a odiar. A chinesinha, sobressaltada. Distante, o brasileiro sorri de leve, conversando no café com os companheiros. Não vê nada ao redor: o intervalo é sagrado.

O rumor das máquinas ensurdece. O casaco está perdido enquanto mercadoria. A frase inglesa perde o sentido desejado. A chinesinha perde a folga. O contramestre arranca-lhe violentamente o produto das mãos. Bufa ao examinar o erro. É baixo, tem os cabelos lisos. Sua mais que todos os outros ali.

Aos poucos tranquiliza-se. A chinesa pensa que é normal que isso aconteça. Afinal, ela tem outras coisas mais importantes na cabeça. A cabeça, sempre baixa, quase anexa à máquina. Desconcentra-se: e daí? O contramestre, fixo nos detalhes do casaco  preenche-se da ideia: aquilo não deve ser desperdiçado. Deixa-se tomar pelo alívio produtivo típico dos administradores. Sejam eles grandes ou pequenos.

Sai sem dizer palavra. O comprador chega às trẽs. Sem titubear, no cubículo envidraçado de onde acredita gerir recursos humanos, dobra o casaco e o empilha junto a centenas de outros.

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Instruções para chover

setembro 14, 2011 at 9:25 pm (10 minutos)

Em frente ao prédio, a rua do centro da cidade, as poças colecionam chuva há algum tempo. As fendas, por sua vez, colecionam poças. Abaixo delas, vitórias-régias tremem de frio.

Há nelas um pouco da calamidade que nos cerca. A cachorra não percebe. Cava bem no meio da rampa de concreto de acesso à garagem. Mesmo com o som difuso dos pingos, pode-se ouvir suas unhas arranhando o concreto. Procura algo enquanto um fio fino de água começa a descer em direção ao subsolo, onde estão os carros.

Ao mesmo tempo, a cachorra pára e me mira através: chega com os olhos à chuva que está atrás. Ao interromper a primeira busca e empreender a segunda, agora com os olhos apertados e distantes, chafurdando na paisagem, percebo que sua perna esquerda traseira mexe involuntária. Eu fixo ali, enquanto a cachorra me atravessa.

Sei entrar pela garagem deste prédio que não é nosso. Chego já após o expediente, embora alguns indivíduos permaneçam aqui, perambulando pelos andares, entre uma reunião e outra. Conhecem-me, mesmo fingindo o contrário. Prefiro ir pelas escadas sempre, temo que o elevador enguiçe comigo dentro e ninguém ouça meus berros. No terceiro andar, rumo ao ático, trombo uma figura sinistra, com chapéu pontiagudo a esconder a calvície. As têmporas afundadas numa fronte que periga submergir,. Olha-me de soslaio, retirando-se de algum aposento para atender o celular na esquina escura do corredor. Nota-se que trama, que planeja, mas não escuta. Chove a cântaros, o ruído torna-lhe impossível compreender seu interlocutor. A ligação é cortada. Ele parece desesperar, percebe-me, enfara-se em seu próprio sobretudo. Some à direita. Sua sombra, projetada na luz amarela, permanece comigo.

Em solidariedade, a cachorra, perna trêmula, também sobe as escadas. Não se pode depreender sua idade, mas o pêlo está úmido e muito maltratado. O focinho cinzento de tanta cidade.

Vamos ao ático.

No último lance de escadas, chega-me aos pés uma torrente de água cada vez mais grossa. Vem túrgida, suja, viscosa. Penso nestes adjetivos todos quando me inclino para tocá-la. Penso em seus antônimos e sua inerente utilidade. A cadela lambe a água, os degraus, minhas botas. Mas o ruído de fundo muda. A metereologia muda. Outra sombra projeta-se de cima sobre nós. Há uma serra rilhando contra material duro. Olho pra cima, um homem de trajes verdes escuros, militares, barba ruiva artificialmente desgrenhada, surpreende-se comigo. Estou no último lance de escada, a cachorra não late, há apenas a possibilidade de luz pela brecha da porta. O homem está nervoso e oprime as próprias arcadas dentárias uma contra a outra.

Empurro-o com força. Não sou bom sem o elemento surpresa. Funciona, pois ele se espanta e impede seu ódio. Voa pelas escadas e me ultrapassa. Não queria nada comigo. Ouço seu tropeção, sua batida contra o portão de ferro da garagem. Machucou-se sem querer.

Ao sairmos, a cachorra cruza abrupta meu caminho, como se precisando chegar antes num ponto decisivo. Pára defronte ao pequeno canteiro de plantas decorativas. Sobre ela a água cai torrencialmente. Ela analisa as poças. Escolhe uma delas e volta a cavar.

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Rio Canoas Energia S.A recusa-se em avançar nas negociações com atingidos pela UHE Garibaldi

setembro 13, 2011 at 6:46 pm (Especiais) ()

Na manhã do dia 13 de setembro de 2011, aconteceu no município de Abdon Batista, planalto sul de Santa Catarina, a terceira reunião entre o consórcio Rio Canoas Energia S.A e a comissão representante dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Garibaldi, a ser implantada no rio Canoas, afluente do rio Uruguai. A reunião, que contou com a presença de cerca de 20 futuros atingidos e 10 membros do consórcio, trouxe novos impasses para o futuro das negociações e lutas pelos direitos da população impactada na região.

O principal resultado do encontro foi a recusa do consórcio em avançar nos pontos de pauta propostos pela comissão – que traz as demandas de moradores de 5 municípios (Abdon Batista, Cerro Negro, Campo Belo do Sul, Vargem e São José do Cerrito) afetados pelo empreendimento. Em cerca de uma hora e meia de tentativa de conversa, pode-se perceber que, se depender dos responsáveis pela UHE Garibaldi, a dificuldade de encontrar espaços adequados de negociação junto a consórcios privados de geração de energia elétrica continuará. Mesmo depois das lutas históricas da bacia do Uruguai (Itá, Machadinho, Barra Grande e Campos Novos são exemplos fortes), a capacidade de organização dos atingidos ainda parece subestimada pelos empreendedores.

A UHE Garibaldi já instalou o canteiro de obras em Abdon Batista. Os trabalhos vão em ritmo intenso. As primeiras desapropriações estão judicializadas. Se comparada ao histórico dos empreendimentos na bacia do Uruguai, sua capacidade de geração (177 Mw por hora) é relativamente pequena. Mesmo assim, a quantidade de atingidos será significativa, devido ao relevo plano às margens do Canoas, o que leva os agricultores a terem sua casa e lavoura muito próximas da beira do rio. Nas estimativas do MAB, entre 800 e 1000 pessoas serão atingidas diretamente.

Após a Rio Canoas Energia S.A. apresentar um primeiro documento muito vago, contendo “Critérios e Diretrizes”, a comissão de atingidos apresentou uma contra-proposta, em reunião ocorrida no dia 25 de agosto. Nela, estavam contidas algumas posições, divididas em duas linhas gerais:

  • Indenizações:

    # os preços oferecidos pela terra nua e pelas benfeitorias estavam muito baixos e não garantem a mudança para outras regiões com a mesma qualidade da terra atualmente habitada;

    #Além disso, indenização por árvores frutíferas produzindo e reflorestamento era irrisória.

    #Áreas de Preservação Permanente (APPs) não seriam indenizadas. E devem ser.

    #Madeira a ser cortada na área que será alagada também não será indenizada. E deve ser.

    #Laudos de estudo dos terrenos devem ter uma cópia fornecida ao proprietário procurado pela empresa, para que ele possa procurar a assessoria que desejar e com quantidade adequada de tempo para isso.

    # Incorporação de outras categorias como público-alvo para indenização (balseiros, professores de áreas rurais atingidas, pequenos comerciantes).

  • Reassentamentos:

    # Tamanho proposto para os lotes é pequeno;

    # Empresa impõe inúmeros obstáculos para a comprovação dos beneficiários;

Nenhuma das propostas de revisão apresentadas pela comissão de atingidos foi contemplada com qualquer avanço, o que demonstrou a intenção do consórcio em maximizar os lucros até na barganha de direitos.

Vale lembrar que esta é a mesma lógica que orienta a relação da empresa com os próprios trabalhadores na barragem, cujas condições de trabalho estão marcadas pela precariedade. Há cerca de um mês e meio atrás – tal como nos contextos de Jirau e Santo Antônio, no complexo do rio Madeira, em Rondônia, e nas obras de reforma do estádio do Maracanã, para a Copa de 2014 – também em Abdon Batista os operários viram-se obrigados a paralisarem a construção, devido à falta de requisitos mínimos de salubridade produtiva a serem cumpridos pela empresa – tais como alimentação decente, banheiros, salários adequados, pagamento de horas extras – culminando na humilhação e demissão de quatro trabalhadores.

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Movimentos Sociais e sua Política de Comunicação – II

setembro 9, 2011 at 5:20 pm (Aprofundando) (, )

Bem, a ideia do bate-papo era problematizar as condições necessárias para um movimento social formular uma política própria de comunicação. Como a vida contemporânea é permeada pelo uso dos meios de comunicação e o militante social geralmente é umx sujeitx que pensa e conversa bastante sobre a luta da qual participa, uma boa estratégia é tentar cruzar estas duas formas de participação – numa sociedade informacional e num movimento social. Assim, se pode tornar mais explícitas e públicas suas implicações, sistematizando-as em possíveis linhas de ação. Ou seja, fazer com que os participantes tomem consciência de como produzir e/ou se apropriar meios de comunicação em prol de sua luta.

Algo importante é deixar uma coisa bem clara: comunicação é uma coisa, jornalismo é outra. Jornalismo é uma forma específica e tecnicizada de produção de discurso sobre a realidade, que segue uma longa cadeia de regras de conduta, ensinadas em faculdades e aprendidas no cotidiano das redações. Conheço o jornalismo a partir dos produtos que gera, aos quais temos acesso no noticiário diário e que posso analisar na condição de leitor e leigo. Nada mais do que isso posso dizer sobre o tema.

Já a comunicação é o que nos diferencia como humanos. É a partir dela que se apreende e transmite a realidade circundante. Ao lado do trabalho e do jogo, é ela que fundamenta qualquer proposta pedagógica libertadora. Portanto, nos é acessível e, exatamente por isso, pode transformar-se em potente ferramenta de luta. Um movimento social pode formular sua política de comunicação prescindindo de jornalistas. (Contar com eles, no entanto, é sempre bom.). A capacidade de produzir comunicação, não só de consumi-la, rompe a dicotomia estanque entre emissor e receptor que, no campo da produção da informação, reproduz a divisão social do trabalho vigente no capitalismo.

O procedimento seguinte é perceber os grupos que disputam a opinião pública e suas posições materiais. Quais delas veêm-se mais próximas na fabricação de hegemonia? Quais as formas, suportes, veículos, estratégias discursivas, para alcançá-la? Como diferenciar os veículos dentro de um bloco hegemônico? Ou seriam todos equivalentes? Quais as especificidades dos veículos anti-hegemônicos? Quais as estratégias que um movimento popular deve desenvolver diante destas multiplicidades?

A partir destas perguntas, montamos um diagrama ainda superficial. Lutam, no campo da opinião pública, grupos que poderiam ser assim agrupados:

  • Mídia burguesa conservadora (MBC): conglomerados de grande alcance; burguesamente organizados (no sentido de viverem da exploração do trabalho e da receita publicitária, de serem uma empresa cujo objetivo importante, embora não único, seja lidar com a informação enquanto mercadoria) num dos ramos mais lucrativos no capitalismo contemporâneo; politicamente, produzem audiência passiva (no máximo, contam com espaço para comentários nas matérias, “cartas ao leitor” ou o “curtir” das redes sociais); atrelados historicamente às elites dirigentes do país, com participação ativa na legitimação dos governos de regimes de exceção; trabalham com as arcaicas noções de objetividade e imparcialidade. Exemplos: Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, RBS, Globo, Ed. Abril, Fox News, Clarín, etc.

  • Mídia burguesa progressista (MBP): também burguesamente organizada e com receitas publicitárias menores (geralmente com grande participação da mídia estatal); pauta temas candentes também na MBC, mas a partir de um prisma menos moralista ou conservador politicamente; admite a subjetividade na produção do ponto de vista jornalístico, embora geralmente não deixe claro a que grupo, na realidade material, atrela-se (na época atual, na qual predomina a tendência financista predatória no capitalismo globalizado, tende a defender elites industriais nacionais e centrais trabalhistas “amarelas”, legitimando então o pactos social); encanta-se pelo discurso do capitalismo verde, sustentável; indigna-se com a retirada de políticas sociais focalizadas; pauta de forma avançada questões identitárias ligadas à xenofobia, aborto, homofobia, uso de entorpecentes; sensibiliza-se com as pautas dos movimentos sociais, oferecendo-lhes espaços esporádicos; ainda produz audiências passivas, etc. Ex: Carta Capital, Revista Piauí, The Guardian. (Outros exemplos são bem-vindos).

  • Mídia Burguesa Especializada (MBE): Mobilizada pelos setores progressista e conservador da burguesia informacional, interessa aqui por que fornece dados e análises dos quais outras frações burguesas não podem prescindir. Mais do que nos dois segmentos midiáticos supracitados, deve aparecer como extremamente técnica e desinteressada. Mas suas ligações materiais continuam com os mesmos grupos – vide o exemplo do jornal “Valor Econômico”, no Brasil. Outros exemplos: Gazeta Mercantil e The Economist. (Vale dizer que a sugestão, absolutamente acertada, de inclusão deste ramo no diagrama, veio dos participantes da oficina do MPL)

  • Mídia de Esquerda (ME): próxima a movimentos sociais e/ou partidos políticos e às questões e pautas que produzem, embora ainda organize seu discurso de forma eminentemente jornalística; geralmente recebe recursos de colaborações, doações ou publicidade específica; explicita de onde fala, desacredita as intenções de “objetivar” e “imparcializar o discurso”. Exemplos: Democracy Now!; revista Caros Amigos, agência Carta Maior, jornal Brasil de Fato, Le Monde Diplomatique, Rádio Agência Notícias do Planalto, etc. (outros exemplos são bem-vindos).

  • Mídia dos Movimentos (MMs): aquela que apresenta a plataforma dos movimentos sociais a partir de decisões estratégicas tomadas em seu planejamento de lutas. Abrange formatos que transcendem o jornalismo profissional ou o colunismo de especialistas. Pode incorporar ou gerar com criatividade expressões que abarquem a ludicidade – a mística, nos movimentos da Via Campesina, ou os comunicados zapatistas redigidos pelo Sup. Marcos, são exemplos fortíssimos desta reapropriação linguística e produção autônoma de estilo.

    Implica uma articulação com outras dimensões de organização da luta, como os espaços de formação e de trabalho de base (ou “frente de massas”, na nomenclatura de alguns).

    Parte do pressuposto que todxs podem produzir mídia.

    Tem claro o ponto do conflito social de onde fala, a centralidade da comunicação na luta atual e a necessidade que ela seja um meio, e não um fim em si mesmo – sua instrumentalidade. Exemplos de veículos são inúmeros.

    Sobre estes pontos, devemos nos debruçar com mais calma no próximo texto.

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Movimentos Sociais e sua política de comunicação – I

setembro 6, 2011 at 11:19 am (Aprofundando) (, , )

Nesses dias o MPL Floripa convidou para batermos um papo sobre produção de programas de rádio. Elxs desejam lançar alguns conteúdos em áudio, sistematizar as discussões sobre a iniciativa da tarifa zero e publicizar não só sua absoluta necessidade, mas principalmente sua transparente viabilidade. Topei na hora a conversa, até por que me admira a capacidade do movimento de propor algo interessante na paisagem um tanto árida das lutas sociais atuais. Vale lembrar que o transporte coletivo nos centros urbanos brasileiros associa-se a uma faceta muito atrasada do nosso capitalismo, erigida por décadas de lógica rodoviarista e cultura do automóvel, por um lado, e por um setor empresarial de visão arcaica e dependente de laços espúrios com governos municipais.

Ao sentar para preparar algo, uma introdução à concepção de comunicação construída em duas frentes de luta distintas (a rádio de Tróia e a rádio comunitária do Campeche), foi prazeroso reler alguns textos-base, tais como o material do Hans Magnus Enzensberger produzido no começo dos anos 70 (teses socialistas sobre comunicação de massa) e uma coletânea argentina sobre “Contra-Información”. Uma coisa que deveria ser mais corriqueira se passou:  aqueles textos confirmavam algumas discussões e experiências vividas, ampliava-lhes algumas perspectivas, atualizava outras. Enfim, relacionavam-se de forma igualitária com a prática política.

Mostravam também seu limite diante de alguns aspectos da realidade comunicacional hoje, nas quais qualquer um é incessante produtor informacional (vide a avalanche de vídeos para o youtube e o uso incessante de redes sociais), embora isto esteja longe de algo como a democratização da comunicação e a produção de contra-hegemonia. É só atentarmos para a persistência material e ideológica dos grandes conglomerados de mídia no Brasil, América Latina e mundão. E também para a incapacidade de este ambiente crescentemente colaborativo gerar organização coletiva radical em níveis diretamente proporcionais. Há a colaboração como fim em si, não como meio – e isso não resolve os problemas fundamentais.

As ideias foram aos poucos pipocando na cachola.  Vi então que a conversa inicial, apenas para introdução e contextualização de algumas noções, tomaria mais espaço do que o previsto. A parte dita técnica, de confecção de roteiro, gravação e edição de material, teria que ceder um pouco. Assim, pensei que seria interessante debatermos juntos o que seria uma política de comunicação do Movimento Passe Livre, movimento social contemporâneo que é.

Até por que a questão da mobilidade urbana está na pauta já há algum tempo, tanto em Florianópolis quanto no Brasil. Sobre o tema há material produzido  por veículos de todos os espectros ideológicos. É uma questão recorrente na “opinião pública”.

No entanto, diferentemente dos estudos de Norbert Elias sobre este tema, a opinião pública não pode ser reduzida à expressão de veículos midiáticos ligados a tendências políticas institucionais, confluindo para expressar os matizes de um habitus nacional. Ao contrário, ela expressa conflitos em relação a visões de mundo ligadas a posições materiais dos grupos, que transcendem a expressão burguesamente organizada em conglomerados de mídia.  Aliás, não é exatamente a operação de confundir tais conglomerados com a totalidade da opinião pública que interessa à mídia burguesa? Não é o mais desejado em termos de legitimação social e fabricação do consenso?

Há de se expandir o campo. No que diz respeito à formação da opinião pública,  reivindicar um papel importante para as mídias produzidas pelos próprios movimentos sociais e populares, que buscam instaurar claramente um conflito, advindo de sua posição na luta pelo aprofundamento da democracia e  transformação das estruturas materiais.

Assim, na opinião pública entendida como campo de conflito e luta, a mobilidade urbana tratada pelos veículos de comunicação burguesa pode até expressar um problema visível, mas não alguns dos seus fundamentos e razões. A apropriação capitalista dos meios de transporte, a maneira desigual como a cidade é vivenciada pelos trabalhadores e pelos burgueses, as alianças entre empresas de ônibus e grupos políticos hegemônicos, etc… Qual a incidência destes fatores nas reportagens sobre o trânsito? A própria falta de discussão acerca de obras viárias mirabolantes (tais como a quarta ponte em Florianópolis ou seus viadutos da Seta e do Rita Maria), absolutamente desatreladas de posicionamentos acerca da possível reversão da cultura do carro e da organização da cidade de forma diversa daquela voltada apenas para a circulação de mercadorias (mormente força de trabalho) não podem aparecer, pois isto não está no horizonte dos interesses dos veículos da mídia burguesa hegemônica. Vê-se uma faceta do problema (no caso, o tempo que as classes alta e média motorizada perdem nos engarrafamentos), mas não a contradição que a origina. Para expô-la, aí entra o movimento social e sua política de comunicação.

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