As Agruras deste Bólido Inimaginável

junho 26, 2012 at 10:57 pm (10 minutos) (, )

 (A partir de “Dias na Birmânia” (1932), de George Orwell)

Sempre desconfiei do pessoal que, a cada dez palavras, aproveita para malandramente deslizar alguma referência à “identidade”.

Quando se fala sobre política: “é uma questão da identidade dos grupos que participam das manifestações contra a tarifa: hippies, punks, góticos, aposentados, corintianos…”.

Sofrimento psíquico: “a identidade está sempre em fluxo constante [outra muleta terminológica] e dificilmente pode ser apreendida…”.

Literatura, cinema: “o sujeito está aí, a identidade dele colocada a partir do momento em que se defronta com o desmanchar da memória e a necessidade de recontar…”.

Antropologia: a identidade e a alteridade, blablablá…

Há quem negocie a identidade em situação de conflito e que a reinvente em seu perfil no facebook. Há, claro, o problema do desaparecimento da identidade rural, que paulatinamente engrossa a multiplicidade complexa das identidades urbanas, tão lábeis que, enfim, líquidas – mas aí o tédio não permite mais acompanhar o andar da carruagem.

É, tudo muito esfumaçado, mesmo. Não é estranho começar a contar carneiros quando este tipo de artefato assalta a cena. Quando toma conta da conversa e os interlocutores deixam-se embasbacar. No meu caso, as mãos tremem, quero uma cerveja. Se for de manhã, café e cigarros (pra quem fuma). Deve-se sublinhar que, apesar de alguma ansiedade diante da reiterada cantilena, não há mais irritação. Você se acostuma – a identidade é um pilar tão fundante de certo jargão [como o é também a “energia/vibe” para uns, o “desenvolvimento” para outros, a “economia da cultura” para os mais descolados e o “empreendedorismo” para os irremediavelmente crédulos] que o único esforço possível é direcionar-se para mundos que dela prescindam.

Eis, no entanto, que um dia esta sólida convicção me trai. Como quase sempre, estava prostrado diante do computador, num sábado azul do qual me distraí até o ponto em que escureceu demais. Umas três ou quatro arfadas esquisitas, manifestava-se a miocardiopatia companheira. Velha (de) guerra. Hipertrófica, sempre súbita, embora não-obstrutiva. Resolvo esticar as pernas, desço até a padaria. Uma cerveja e um jogo de futebol na TV, daquela equipe lacônica demais. Rumino umas palavras com o padeiro, que limpa o vidro externo da estufa de salgados como se ali jazesse sua própria reputação. É conhecido o fato de que não se pode deixar aquela mancha de vapor prolongar-se demais pela superfície transparente: sinal de pouca dignidade. Respeito o gesto, ele não quer conversar.

E daí de novo aquela frase, daquele samba: “Eu já nem me lembro mais/ Quem me deixou assim.”

Logo em seguida, espirro. No instante mesmo em que o espirro se projeta, que me atravessa a centenas de quilômetros por hora, eu penso: “É tudo um bólido inimaginável.” São algumas vogais bem abertas, duas delas acentuadas, lutando contra a opacidade característica do “i”. “Bólido inimaginável.”

Repito para mim mesmo esta locução. Um achado! Várias vezes, bem baixinho. Só eu por ali, no balcão. Pelo ritmo da tarde, a cadência do futebol, o esmorecer do azul, a expressão parece deslocada. A cidade em feriado, deseja-se parada. Tudo calmo e eu ali, sob o efeito de cinética miragem.

Tento coçar o nariz e puxar a gola da camisa para frente – são meus tiques, os que adotei para vestir-me enquanto sujeito. Não consigo manejar um repertório tão complexo deles, como fazem com maestria tipos como o Slavoj Zizek. Já experimentei vários (cocei cabeça, cocei queixo, estalei dedos, mexi coreograficamente os lóbulos das orelhas, etc.), confrontei-os numa espécie de eliminatória, até que restaram só dois, a cuja prática jurei entregar meu cotidiano. Todos os dias, em situações de nervosismo e/ou tédio, puxa-se a gola da camisa e coça-se o nariz com a base externa do dedo indicador. E a vida pode seguir.

Ou não. Tentei fazer isso agora, diante do “bólido inimaginável” que me assaltava em plena padaria, mas não pude. Gritos parados no ar, meus tiques outrora tão eloquentes. Seria algum tipo de transformação que eu teria que decifrar? Diante disso, ânimo e preguiça.

Num estalo. Não tem momento especial ou crise alguma. Eu pensei que não queria mais pensar aquele tipo de pensamento. Não mais aquelas ideias sobre mim mesmo, sobre minha história, sobre como estou em eterna transformação, sobre os projetos para o futuro, sobre a possibilidade de meus filhos saírem o contrário do que eu desejo e imagino, minhas pretensões salariais, de convênio médico, a aposentadoria complementar, o tamanho do caixão ou a localização para o despejo das cinzas. “Porra, é uma ladainha de merda”. Dei um gole. Não faz sentido.

Prefiro contar algum feito, meu ou alheio, passado ou atual. Sentar-me à praça do mercado e conversar com Sócrates, observá-lo retirar a fórceps (herança materna?) alguma presunção dos supostamente sábios sujeitos comuns. Sentar com Orwell na Catalunha e perguntar por suas cordas vocais, depois que uma delas fora atingida por um refluxo do fuzil antigo, com o qual combateu pelas coisas certas. Ou mesmo questionar-lhe sobre outro fuzil, desta vez tão perfeito quanto um relógio suíço, com o qual abateu um elefante enlouquecido numa aldeia birmanesa (hoje Myanmar). Perguntar-lhe se o olhar melancólico que dirigiu àquele cadáver gigantesco, destroçado pelos nativos no momento imediatamente posterior, não era o mesmo que dirigia ao império britânico, àquela altura do campeonato.

Ou simplesmente observar e questionar acerca dos desníveis das ruas em volta, e das plantas que nascem das fendas subsequentes.

Ou seja, distrair-me de mim mesmo, de forma tão aguda e eficiente que este ousasse enfarar-se e desaparecer. “Distraídos venceremos”, o mantra a ser entoado.

Que isso não diga quem sou, mas o que é. Sem este papo de construção da identidade.

Mais um gole. Arfei também, é esquisito: vem sempre do nada – e com arritmia.

Assim como o “eu”. A gente fala muito disso. O “eu” não deveria ser dito, mas dançado.

Pensei: “que merda, a identidade”. Mas aqui está ela, em pleno texto. De certa forma, é ela que mata Flory feito um “bólido inimaginável”. Não que ele fosse um sujeito com o qual se conseguisse simpatizar de cara. Mas, com certeza, desperta-nos alguma compaixão – e a compaixão, para os que tentamos fugir do cristianismo, revolta. Há de se reservar algum tipo de misericórdia àquele cuja alma se despedaça diante de nós?

A de Flory esgarça-se assim, enquanto assistimos. Com o fascinante adendo de que ocorre entre dois mundos, como se estivesse com um pé em cada margem do abismo. Nisso, há uma perda dupla. O sentido não está nem lá, nem cá. Orwell, o escritor, fez outra coisa. Pelo contrário, viaja para encontrar tal sentido. Junta múltiplos mundos e os reorganiza, para nosso regozijo. No seu caso, a Birmânia, Paris e Londres (disfarçado de mendigo), a Catalunha. Algumas vezes, de armas em punho.

Mais um gole. Este ensaio, enfim, sai. Em pleno balcão da padaria, às 17h56 da tarde, pode-se vislumbrar a estufa sendo reabastecida. Há um pernil repleto de cebola, pimentão e tomate; há pão de queijo recheado com cheddar, há o que em minha infância se convencionou chamar “enroladinho de salsicha”. O atendente, também responsável pela panificação, está cansado. Despeja tudo maquinalmente. Há novas manchas de vapor na estufa. Percebo como seu olhar, sua hexis corporal, fundem-se ao seu ofício: deve limpá-la, deve retirá-la dali.

Mune-se de um pano sujo. Verifica-o: está imundo. Olha para os lados, para ver se eu percebi. Percebi. Encaro-o de frente, sem piscar. Sem tiques. Não estou nervoso, nem entediado – talvez tenham percebido isso, os tiques, interpretando como o sinal para finalmente se retirarem da minha vida. Miro fundo o rapaz. Tem a barba bem aparada e um cabelo malhado artificialmente – loiro e preto. Empunha o pano e ousa avançar para a estufa, trapo em punho, me encarando.

Deveria estar satisfeito com seus salgados novos, dignos de venda. Mas já os ignora (já estão prontos, etapa superada do processo produtivo) e se volta para a próxima missão. Se aproxima da estufa de forma ambígua. É prova viva de uma resignação determinada – tem que limpar.

Estou de frente para a estufa, do outro lado do balcão.

Mais um gole.

Ele começa. Não gosta de entrever meu olhar pelo vidro embaçado, mas resolvi não arredar pé. Olhos fixos, acompanho a máquina – o pano pra lá e pra cá. Ele também não baixa os olhos.

Daí acontece uma coisa esquisita: a mancha não sai. É mero vapor, mas não sai. Ele tenta outro, outro, até aqueloutro pano. Busca um “Veja Vidrex” no depósito e empapa uma flanela novinha, mas não adianta. Olha-me cada vez mais constrangido. Bebo mais um gole. Ofereço-o um copo (“pago a rodada”). Ele se recusa. Usa a camisa. O avental. Nada. Ofereço a minha manga de algodão puído. “ Depois de toalha velha, é o melhor material para pano de chão”, vendo o peixe. Ele sorri. Dou a volta no balcão e começo a esfregar. Quase nada se pode enxergar no vidro. Todavia, meu esforço tem resultado, a coisa começa a ficar limpa de novo. Entrevê-se já o lado oposto, xangri-lá.

Bem nesta hora, sou atingido por outro “bólido inimaginável”, desta vez às costas da cabeça. Uma garrafa ou algum outro utensílio. Foi ele, mais determinado do que resignado. Um ataque fulminante, envenenado de raiva. Roubei-lhe algo, sem saber. Sinto uma dor tremenda, caio e meus olhos se fecham imediatamente.

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Noel e a “Filosofia”

março 19, 2012 at 9:06 am (10 minutos) (, , )

“Filosofia”, tema de Noel Rosa, ficou conhecida pelas novas gerações através da versão de Chico Buarque em seu disco “Sinal Fechado”, em que se propôs a revisitar outros autores como Gilberto Gil e Paulinho da Viola – cuja canção sobre a solidão e a velocidade urbanas dão título ao disco. Temos também a mais recente versão de Paulinho para esta obra de Noel num excerto de documentário sobre aquele  intitulado “Meu tempo é hoje”, realizado no começo dos anos 2000.
Alguns dos eixos da letra de “Filosofia” passam por preocupações recorrentes na obra do próprio Paulinho, seja como compositor ou nas canções de outros que escolheu interpretar. Para compreender melhor isso, vale debruçarmo-nos sobre tais eixos. A tensão da música parece girar em torno das duas posições não só diferentes, mas simétricas, ocupadas por dois personagens: o narrador na canção e o interlocutor ao qual se dirige. Aquele apresenta-se como deslocado na sociedade que, num duplo movimento, despreza-lhe e o condena – como um bom punk poderia sentir-se uns 50 anos depois dos escritos de Noel. O outro, que nunca aparece em voz ativa, é apresentado como alguém “da aristocracia”, que vive à barra das saias dos ricos e poderosos e só consegue ter algum destaque devido ao seu escancarado servilismo.
O narrador anuncia seu repúdio a esta postura e também sua indiferença para com a atitude do mundo em geral. O que confere tanta solidez às suas certezas é o apego ao samba e o auxílio da “filosofia”. Tal termo, ao meu ver, não designa especificamente o tipo homônimo de conhecimento que nasce na Grécia antiga e busca compreender o mundo através da argumentação, do estabelecimento de universais, da crescente abstração. Aqui, passa mais como um sinônimo de “visão de mundo”, como poderia corroborar o uso do mesmo termo no samba “Mora na filosofia”, de Monsueto – também, coincidentemente, trazido às novas gerações por um disco da década de 1970, o “Transa” (1972), de Caetano Veloso.
Mas é possível aproximar esta postura do narrador de Noel – um tanto distante, talvez tranquila, talvez triste – a uma característica do lógos grego. Ao menos aquele relacionado aos sábios antigos, anteriores a Sócrates e talvez mesmo aos pré-socráticos: a busca por uma medida justa para pensar e atuar no mundo, algo que não seja um puro jacto de raiva, nem submissão pura e simples (como antes ocorria à herança preexistente do mito), mas enunciado propositivo. Não estaria Noel buscando a temperança, a sophrosyne, quando acena para o fato de que a filosofia, antes de tudo, lhe auxilia a “viver indiferente assim”?
Para melhor ilustrar o argumento, poderíamos contrapor tal ideia a outra, também cara ao samba (abundante nas letras dos anos 20, 30, 40) e presente no mundo grego: a de orgia, não no sentido de bacanais pantagruélicos, mas de desmedida, de busca pelo prazer através da música, da dança, da bebida, da briga e do sexo. Esta desmedida, este deliberado e fundante excesso, muito afeita ao ditames de Dionísio, parece contrapor-se ao que pregam o “Noel filósofo” e também a temperança clássica.
Por fim, outro de nossos “sambistas-filósofos” – ou seja, que em sua lírica adotam certa postura contemplativa e ruminam o mundo ao dele tratar – é Paulinho da Viola. Poderíamos citar exemplos desta atitude em canções como “Meu mundo é hoje”, de Wilson Batista, na qual se afirma “Eu sou assim/Quem quiser gostar de mim, eu sou assim/Eu sou assim/ Assim morrerei um dia/ Não levarei arrependimentos/Nem o peso da hipocrisia”, numa profissão de sinceridade diante do mesmo mal que assola a tal aristocracia mencionada por Noel. Que, para Batista, poderia ser caracterizada assim: “Tenho pena daqueles/ Que se agacham até o chão/ Enganando a si mesmos/ Por dinheiro ou posição”.
Outros dois rápidos exemplos desta contemplação musical em Paulinho, desta vez de sua própria lavra, seriam os temas “Para ver as meninas” e “Coisas do Mundo, Minha Nêga”. O primeiro propugna um afastamento do mundo e uma busca da quietude não em prol de compreender um thaumazein, mas uma dor tão aguda que o leva a questionar-se sobre como se constitui sua própria subjetividade (“Eu nem me lembro mais/ O que me deixou assim”) e acaba por estimulá-lo a querer compor um “samba sobre o infinito”, seja lá o que isso possa ser.
Por fim, o “Coisas do Mundo, Minha Néga”, coloca o sambista como espécie de andarilho urbano, que vai topando com situações contraditórias, porque cotidianas e extraordinárias, tentando reagir a elas com tranquilidade, com naturalidade, para depois relatá-las à sua companheira.  Retornamos aqui a uma espécie de busca pela temperança, mas sem a frieza que é possível vislumbrar em Noel ou mesmo em Wilson Batista. É mais sutil e leve, mesmo que atordoada por todas as ocorrências brutais com as quais o narrador vai se deparando.

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25 de janeiro, 2012

fevereiro 14, 2012 at 11:54 am (10 minutos) ()

Saiu e era cedo. Feriado no meio da semana, dia bonito. São Paulo neste janeiro, sempre às cinco da tarde uma pancada de chuva. Hoje, não. Pra rua e a manhã sorria: imperativo por aqui o ato de lançar-se. Não exigia justificativa, embora a sua fosse aceitável: trombaria uma mina, com quem se enlaçava fazia um tempo.

Não sabia se gostava. Eles se estranhavam direto e depois fica um silêncio. Era bom que ela morava longe e no caminho ele podia se preparar, planejar galanteios, gracejos e provocações. “Se ela reclamar, dessa vez eu só fico quieto. Pô, o dia tá lindo. Um monte de gente na rua. Não tem motivo pra achar ruim. É só a gente dar uns beijos, pronto. Tá bom.”

O encontro era no Centro, tinha música no Anhagabaú. Aniversário de São Paulo. Exaltasamba, Katinguelê, pagodes polissílabos. Ela vinha da zona Norte, perto da Armênia. Ele, do Jaguaré. Encontravam-se mais no trabalho, na Santa Efigênia. Ele atendia numa das micro-galerias na penúltima quadra, lá pela altura do número 500 – “mais na parte de elétrica; se você quer novidade tipo mp4 e tablet, pode voltar. Se quer dos chinguilingui, que é mais barato e mais arriscado, vai mais pela esquerda, pelo 300. Se quer coisa dos outros gringos, tem que fuçar na galeria São Paulo.” Ela panfletava bem no início, no largo, ao pé da catedral. Passava o dia tentando convencer os compradores em manada – o cair da tarde a deixava atônita.

Depois do turno, tomavam suco (ele) e cerveja (ela) na beirada do viaduto. Ali tem um prédio baixo, com umas janelas verdes que ele gostava de olhar. Evangélico recém-convertido, neopentecostal no probatório, roçava religiosamente a mão na coxa dela. Era grossa e um pouco mole – ótima. Sofria por senti-la oprimida sob a película de lycra que chamam “legging”. Ela não parecia dar bola. Eletrizado, terminava rápido o suco e a mão continuava, maravilhada a ouvi-la palestrar.

Obcecava-a a possibilidade de terem que sair dali. Toda a região viria abaixo, está na hora de uma Nova Luz, anunciam as autoridades.“Nova Luz! Que igreja é essa? Para onde nós vamos?”, ela desenhava um horizonte devastado com as mãos no ar. “Um ponto aqui vale ouro, leva tempo pra construir a reputação.”

Numa dessas conversas, ele percebeu um ruído de trator de esteira, destes brutos que derrubam tudo e exigem operadores especializados. A principio não deu bola, mas percebeu que o restante dos barulhos passou a ceder – o motor voraz da máquina crescia e os derrubava. Os outros, quase familiares de tão entranhados, passaram a decantar, depositados no fundo do ouvido. Mera estática, agora. Hoje não foi diferente: abriu a porta de casa e a coisa começou. Aos berros, a mãe foi taxativa: “Ih, meu filho! Audiometria pelo SUS demora. Mas você não está ficando surdo, a gente conversa bem!”

Sentia de vez em quando a máquina quase às costas, como se ávida para atropelá-lo. Olhava para trás e nada. “Porra!”, murmurava aliviado. “Que merda de barulho é esse?”, encarando a vitrine da floricultura na Barão de Itapetininga. Queria escolher um buquê, mas desconcentrava-se. Desconcentrava-se também com o sagrado: aqueles palavrões não lhe eram mais permitidos.

Elegeu uma gérbera e sob o sol desaguou na Sé. Tinha missa de manhã na catedral. Menos gente que o normal, mas ainda os tipos de sempre. Parou, admirou a bela edificação, mesmo que interdita em sua atual cosmologia.

Logo saiu do transe. Confusão numa das saídas do templo: ovos choviam, carros pretos com placas brancas e vidro escuro aceleravam,  policiais protegiam algum engravatado. Avistou um vulto que se esgueirava, de olhos bem arregalados sob o resguardo da segurança pública. Ao ataque, um grupo com bandeiras e barbas, vermelhas e negras, xingando a plenos pulmões. Sorriu devagar, um pouco melancólico. “Joga pedra mesmo!”, e imaginou projéteis aos milhares.

Declinou do devaneio levemente anarquista no Viaduto do Chá. Fones de ouvido, a música no talo, ela estava uma beleza, mascando os chicletes de menta. Encostada na mureta. Avistou-o, para logo em seguida desviar o olhar – ritual que não era só seu. A cabeça pende e disfarça, a mirada a esmo, como se não soubéssemos onde colocá-la nestes cinco segundos que @ amante leva para alcançar-nos. À certeza de sua chegada assalta-nos uma espécie de vergonha, por estarmos sim tão expostos ao deleite e não conseguirmos escondê-lo, mas também não completamente resolutos para reconhecê-lo. Como se no meio da multidão em burburinho ocorresse um breve silêncio e exatamente aí qualquer gesto nos entregasse: o estômago roncando alto, um choro enternecido ou, ainda, por sentirmos alguma misericórdia.

“E aí?”, foi sua tentativa de derramar-se. Ela não respondeu de pronto, embora inclinasse um pouco o rosto em sua direção e terminasse por abraçá-lo. Ficou um tempo ali, cansada no cangote dele, autorizando-o a sentir sua respiração tensa. Terminou por lamber-lhe de leve o lóbulo, amolecendo-o. Desencaixou o rosto e declarou: “Cara, tô pensando em ajeitar um currículo. Preciso de grana. Você manja destas coisas? Me disseram que tem que personalizar pra cada lugar pra onde eu resolver mandar.”

O jorro foi súbito, porém sem surpresa pra ele. Era romântica, de um jeito heterodoxo. “Melhor do que aquelas que exigem anelzinho no dedo já na segunda semana”, foi o que conseguiu elaborar de sopetão. Depois de terminar o anúncio, encarou-o com afeto, morna, para logo em seguida distrair-se no horizonte mais além. Ambos manejavam o desconcerto. Percebeu que uma borboleta pousou no ombro dela, de leve apoiada na blusinha nova, comprada no Brás especialmente pra hoje.

“Mas pra quê? Tá ganhando pouco com os panfletos?”, recostou-se no viaduto, para melhor projetar-se sobre os cabelos dela, submetidos a recente escova progressiva. “Ficar em pé o dia todo tá atacando as minhas varizes. É coisa de família e tá me incomodando. Além disso, os caras pensam que é panfleto de putaria e ficam com olhar guloso.” Ela tinha engulhos ao lembrar. Ele, ganas de matar (esqueceu-se da religião).

Ela desanimava em pleno 25 de janeiro. Enlaçando-a pela cintura, planejava mudar o rumo da prosa. Mas sobressaltou-se: com estrondo, o ruído do trator de esteira retornara. Ensurdecera de chofre e não conseguia mais entender o que sua companheira dizia. Impressionava-se com o fato de ela não perceber. Tão nítidos os movimentos rápidos, de motor agitado a realizar pequenos engasgos, como se querendo manobrar depressa num pequeno espaço.

Ao mesmo tempo, aquela pequena multidão da Sé vinha na direção deles, gritando em uníssono. Era menos gente do que na praça. Umas duzentas faixas, cada uma exigindo algo. Duzentas bandeiras, com siglas de até sete caracteres. Alguns tranquilos, outros com caretas de revolta, dois ou três com semblantes gozosos, de quem atingiu alguma autoridade na recente batalha. Em especial, percebeu um homem com o megafone, bem baixo, barba, óculos, a se esgoelar para a multidão que o ignorava.

O homem estava a seu lado, mas ele não conseguia escutar o discurso – e não sentia alívio por isso.

O homem baixo postou-se bem ao seu lado, megafone em punho. Fazia caretas desesperadas, gesticulava, dava pequenos saltinhos, pré-piruetas. A multidão excita os líderes, mesmo que a recíproca não seja verdadeira. As pessoas encostadas na mureta do viaduto afastaram-se, um pouco desgostosas. Ela fez menção de segui-las, agarrando-lhe pelo braço. Reclamava algo que ele não compreendia: nem os lábios conseguia ler-lhe.

Subiu na mureta para entender melhor. Ela ficou assustada, outros na multidão também. Temiam que se espatifasse lá embaixo. Conseguiria descobrir a procedência do estrondo? Transeuntes ao fundo, paralelos ao chão: percebia seus silêncios sorridentes, mas não o trator. Os manifestantes falavam prele ficar tranquilo, ela descabelando-se de medo, já na direção dos policiais.

São 458 anos.

Estava longe da queda.

Precisava de um currículo.

Uma borboleta no ombro.

“Solidariedade ao Pinheirinho.” “Capital imobiliário dependente de violência policial.”, entre outras faixas.

O sol no zênite – Nova Luz?

A cabeça explodindo. Como uma coceira por dentro do crânio.

É só a gente dar uns beijos, pronto.

O megafone.“Desce daí, rapaz!”

Pisca a sirene da viatura.

Onde está o barulho? Os outros barulhos?

Agora é esta coisa só, motor e esteira, querendo de alguma forma colocá-lo abaixo.

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Biografias

janeiro 29, 2012 at 11:06 am (10 minutos) ()

Não frequento mais tanto as vitrines de livrarias, embora sempre tenha por elas cultivado apreço. Num primeiro momento, passei a evitar o hábito por não ter dinheiro para realizar as compras que desejava tanto – e reputar desagradável o ato de salivar diante dos outros, estes sim capazes de consumir. Resignado, entrei a percorrer sebos, lugares cujo charme aumenta na razão diretamente proporcional de sua desorganização, obrigando-nos a adentrar pilhas de livros e pó. Paulatinamente, resolvi também não frequentá-los, por acharem-se por demais assépticos e caros. (Percebe-se que o crescimento de meus vencimentos estão na razão inversamente proporcional daquele que anunciam ser o de nossa nação hoje). Navego na rede, uma ou outra oferta nos portais. Às vezes traio minha sovinice e adquiro algum título.

As vitrines de livrarias foram também assaltadas por muitas coisas que me desinteressavam. Enfastiei-me com a profusão de obras como “Pai rico, pai pobre”, “Quem ama, educa!” e livros sobre os mais variados lances da 2a. Guerra Mundial, nas quais pululam homens fantásticos e impressionantes operações de logística. Procurei nas cidades lugares gratuitos, onde não haviam vitrines – o que me levou então a mirar bastante tempo o céu.

Na cidade nova, não se pode olhar muito para o céu – arranha-céus, esta patologia – e há ainda mais vitrines. Menor dos males: de volta às livrarias. Surpreendi-me com algumas novidades. Uma delas foi a multiplicação de biografias sobre jovens figuras do espetáculo contemporâneo. Em minha época de perseguidor das últimas invenções da indústria cultural, tal fenômeno não chamava a atenção. Hoje, não: Justin Bieber, Adele, Katy Perry, Britney Spears, Robert Pattinson e adjacências tem suas mínimas vidas esmiuçada em obras que brotam feito cogumelos após a chuva – em campos prévia e devidamente estrumados, diga-se.

Fico pensando: o que alguém faz para “merecer” uma biografia? Quando chega o momento de escrevê-la? Não se deveria ter um certo acúmulo de experiências e intervenções na realidade histórica (como no caso mais tradicional de estadistas, generais, lutadores da resistência popular, poetas)? Ou, ao menos, trazer algo de tão meteórico em sua trajetória que seria absurdo deixá-la passar em branco? Não me parece que algo assim se passe com os exemplos do parágrafo anterior.

Concluí que estes “biografados” têm a ver com um mote clássico da ideologia liberal: aquele que prega o exemplo individual do sucesso como referência para toda uma coletividade de pessoas que não chegaram ao mesmo patamar, mas precisam continuar acreditando que “conseguem”. Ou, ao menos, precisam estender um gesto de admiração àquel@s que teriam sido “mais competentes, mais esforçados”. A partir do momento em que se consegue o estrelato ou a fortuna, nada mais precisa acontecer: todo o propósito da vida já se efetivou.

A contrapartida desta ideia é exatamente o discurso que constata que o projeto de vida sonhado na adolescência e primeira maturidade não teria sido alcançado – fosse este o desejo d@ sujeit@ frustrad@ ou de outrem. Evidentemente, é muito mais comum conhecer alguém que esteja praticando ou já tenha praticado este tipo de revisão biográfica – que deságua em crises de diferentes graus de intensidade – do que alguém “bem-sucedido”, certo? O que nos leva a desconfiar da efetividade deste modelo para regermos nossa própria psiquê.

Conclui-se que o estatuto do que pode ou deve ser “biografável” deveria ser amplamente transformado e, por conseguinte, mutíssimo expandido.

Aí entra Agnés Varda e seu último filme exibido no Brasil, “As Praias de Agnés.” Dela, até então, ouvira apenas falar. Não conhecia seus filmes, sua história. E era para ter ficado  assim: fomos assistir outro filme, mas nos confundimos. Restou-nos a pré-estréia do filme de Varda. Última sessão do dia: se não encarássemos, perderíamos a viagem. Ficamos.

O filme parecia uma bomba: autobiografia da octogenária diretora, nascida na Bélgica. São nebulosas as motivações de alguém que se autobiografa – facilmente a coisa derrapa para a auto-exaltação. Por outro lado, o surgimento de “memórias” individuais são sempre bem-vindas, não só por parte de figuras públicas, mas por todos que tenham interesse em fixá-las. Estabelecem-se narrativas em perspectiva, que vão-se entrelaçando tanto entre si e quanto com os estudos históricos, conferindo carne, osso e, por vezes, poesia, à nossa compreensão da história.

Isto escrevo muito por que o filme de Varda, contrariando os temores iniciais, ajuda neste sentido. Bela, bela obra. Traça um panorama de sua vida interessante, com a juventude em plena segunda guerra mundial, a pobreza que leva a família a morar num barco em um pequena cidade belga, a perda do pai devido a dívidas de jogo, o envolvimento com o movimento cinematográfico francês da Nouvelle Vague, o casamento com o também cineasta Jacques Demy, a ida do casal a Hollywood nos anos 60, seu interesse pelas lutas pró-aborto, pelos Panteras Negras, as viagens a Cuba e China no início de ambas revoluções e o entusiasmo com o caráter do trabalho coletivo lá existente, o envolvimento com a cena artística da época, a perda de Demy devido à AIDS, o envelhecimento… São muitos eixos.

Varda os explora de forma criativa e ativa, por reconhecer o exercício da memória como algo deliberadamente seletivo. Brinca com isso. A começar pelo título do filme, justificado da seguinte forma: “Acredito que cada ser humano, se pudesse ser aberto, permitiria entrever uma paisagem. No meu caso, são praias.”. Isto é explicado na introdução do filme, enquanto ela e sua equipe montam diversos espelhos numa das praias de sua vida. O efeito desta operação é belíssimo, hipnótico e fragmentário – Agnés joga com a imagem com despretensão infantil e com a segurança de mestres de ofício.

A partir daí, são diversas as “brincadeiras” neste sentido. A memória vai ficando leve, mesmo quando lida com tensões e tragédias. Tal como sua voz, que narra tudo com poucas mas significativas inflexões. Mesmo seu andar já manco, o olhar um pouco vidrado – o exercício é tirar o peso sem perder a profundidade. Alquimia difícil.

Sofre quando lida com a morte de uma série de amigos com quem construiu toda uma dimensão da arte francesa a partir dos anos 50, marcada pela influência importante do surrealismo. Sofre principalmente ao falar de Demy, que desapareceu relativamente cedo. Sua figura aparece em diversos momentos, Agnés o ama muito. É inacreditável como se expõe sem se afetar. Às vésperas de sua morte, ela lhe propôs fazer uma filme sobre sua infância, entrecruzando as imagens ficcionais com outras documentais, captadas muito próximas do corpo de Demy convalescendo. Uma modalidade muito particular de luto, que gerou um filme nos anos 90 e é retomado n’”As Praias…”

Percebe-se que Agnés sabe se expor. Joga com isso, não como preconizaria nossa sociedade mercantil espetacularizada. Constate-se: tanto para as biografias ansiosas quanto para a as vidas que anseiam mostrar-se em “shows de realidade” nas TVs, nossa cineasta octogenária tem muito o que ensinar.

Ou, como diria um camarada: ela, sim, “tem café no bule”.

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Sob a Marquise, na Cidade Nova

dezembro 28, 2011 at 1:36 pm (10 minutos)

Não tenho terra, permitam-me que nesta chuva eu diga. Mas é um brado parcial, este meu. Como é também a ocupação do solo – alguns têm, outros, não. E sempre há um terreno vazio por aí. Chegaram (o sujeito, por ora, fica indeterminado) antes, subiram a serra, fincaram os marcos, disseram: “isto é meu”. Bestializados, acreditamos nisto até hoje. Hoje, apartamentos vazios por toda esta cidade. Mereceriam ser mapeados, enumerados e colocados gratuitamente à disposição, em listas impressas em letras garrafais e espalhadas por todos os lambe-lambe possíveis.

A cidade, esta em particular, é um falta-e-sobra espaço de enlouquecer qualquer cristão.

Agora, por exemplo, tem gente demais aqui. Estamos todos apertados sob a marquise, compenetrados observando a enxurrada. Agradecendo às bocas-de-lobo que, mesmo cheias de lixo e prestes a entupir, escoam a àgua que poderia subir pra cá e nos afogar.

  • É problema de drenagem. Eu já avisei, mas eles nunca vêm pressas bandas. Já fiz esse serviço quando era moço e sei se a coisa está mal feita. Pra consertar agora vai ser osso. Pra começar tem que quebrar tudo.

“Eu”, no caso, é o Januário, o atarracado zelador de nosso prédio. Não tem o hábito de conversar, já percebi: apenas constata e nos dá o privilégio de presenciar seus diagnósticos. Sabendo disso, confere uma ar escolástico a cada declaração, seja em relação ao aumento do IPTU, os jogos da Portuguesa (seu time, para o qual torce com distância comedida) ou aos novos inquilinos que chegaram há pouco.

“Eles”, por sua vez, são aqueles genéricos funcionários do governo municipal, contra os quais vociferamos toda vez que algum problema irresoluto aparece. Como se sabe, ali reside a culpa, que o imaginário lhes atribui mesmo que a burocracia não o faça.

Quando adicionamos esta culpa tácita, derrota anterior ao próprio jogo, ao inabalável tom de Januário, sabe-se que nada mais há a se discutir. Concordamos sob a marquise, indignados em cantilena, a respiração suspensa de quem precisa se jogar na babilônia e não consegue – devido à inépcia de outrem, para quem um dia ainda vai sobrar porrada.

Acabamos de alugar o apartamento. É caro e minúsculo. Espaço: está perto do metrô (não à beira da praia ou à boca da mata virgem). Tempo: três anos antes da Copa. Aí, a gente se deu mal. E o contrato é por 30 meses.

Foi o que a D. Terezinha me avisou quando viemos olhar o apartamento. “Veja bem, meu filho!”. À época de nossas visitas para fechar a locação, nos perseguia na saída do prédio, avisando que, apesar dela, a vizinhança era esquisita, os condôminos irresponsáveis, que o “nível estava baixando” por ali. “Já procuraram em Perdizes ou em Moema?” Além de inusitada, sua insistência não disfarçava que a decadência não estava restrita ao prédio, impregnando nossa futura vizinha também.

Lembro-me disto bem no momento em que suas ancas fartas me comprimem lateralmente. O espaço sob a marquise comporta pouca gente. Ao lado de D. Terezinha, torna-se uma impossibilidade física e ética. Sem perder a gentileza e o respeito – afinal, é uma madama vetusta – tento não permitir que colonize toda a região, estabelecendo com diplomacia as zonas de fronteira. Sua voz fina e rouca me incomoda. Não quero que ela abra a boca, por isso, modero a disputa.

Em vão. D. Terezinha fala muito. Talvez formada no mesmo instituto de retórica que Januário, adora sínteses de efeito. Mas, para alcançá-las, infelizmente depende de adjetivos e interjeições a granel, encaixadas em rajadas desconcertantes, que não cessam. O interlocutor fica pasmo, não há brecha – entre as frases, desesperadas tomadas de fôlego anunciam não o término, mas a continuidade da ladainha. Por sua natureza torrencial, D. Terezinha é capaz de atrair ou repelir gente – é um campo magnético. Januário, por demais concreto, estaria mais identificado com metáforas na seara da engenharia.

Neste instante, oportunidade rara, D. Terezinha consegue fustigá-lo:

    • Não adianta ficar chorando pitanga. Você sabe como é, né, Januário? Não adianta. (Respiração arfante). Eu não devia ter saído de casa. Olha esta calçada! Isso não é responsabilidade do condomínio? Tá toda afundada, fica cheia de água. Essa água preta e a gente pisando. (Arfa, arfa). Ai que nojo, pode estar misturada com xixi de cachorro, gato, e a gente pegar toxoplasmose, que nem aconteceu com aquele povo quando choveu lá em Santa Catarina. Vocês não viram na TV daquela vez? (Língua de fora, arfando: muita gente em volta) Ifff, tem rachadura na parede do prédio também, dá pra ver a água escorrendo mesmo com a gente aqui embaixo!

Ao contrário de nossa situação, recentes e não-proprietários, Terezinha mora aqui desde sempre. Herdou o apartamento através de um mecanismo genealógico tortuoso, que insiste em explicar a todos os neófitos, descrevendo em detalhes heranças, inventários, conflitos de família. A família é paulista “desde os bandeirantes” e aí o papo ganha uma certa empáfia, que incomoda principalmente o Isvandilson, nosso único vizinho no último andar, . “A senhora deveria tatuar a bandeira no bíceps, ou dar aos netos esses nomes tipo Anhagabaú, Piratininga ou Itaquaquecetuba, pra demonstrar orgulho”, ele disse uma vez, num encontro tenso no começo da escada, em que por qualquer motivo já começava louvar a “locomotiva do Brasil”.

O Isvandilson é um punk hoje velho, que veio de Brasília no começo dos anos 80. Lá ele já se identificava com o visual, a música, as ideias – chegou em São Paulo apenas para confirmar. E esta foi sua maior alegria durante mais de 20 anos por aqui. Durante este tempo aprendeu a dizer as coisas na cara e na lata, por prazer e por dever. Atualmente, mais por prazer.

Não trabalha mais: vive de um precoce aposentadoria por invalidez (“mixaria da porra”) e da ajuda de um filho, que lhe envia dinheiro. O filho mora em Itapevi, trabalha numa loja de sapatos perto da São Bento. Anos atrás, tiveram “uma conversa franca”: disse que não queria o jovem sob o mesmo teto que ele, embora gostasse dele “pra caralho”. E mordeu: “eu preciso que você me dê uma grana de vez em quando, pois eu tô fodido. A vida me fodeu legal.” O “de vez em quando” virou mensal, e o garoto não reclama.

Isvandilson, ao contrário, esbraveja e impreca.

    • Se não fosse essa merda de hérnia nas costas, eu mesmo quebrava a calçada e fazia outra. Mas daí era pra parar de pagar este condomínio de vez, por que parece imposto do governo: suga, suga, e não tem retorno.

E acende um cigarro vagabundo.

      • Pôôôôô… – reclama a geral, tentando amparar-se em recente lei municipal anti-tabagista.

Em vão. O espaço é minúsculo e minhas narinas estão coladas ao Isvandilson. Mas não acho ruim, até vou com a cara dele. Meus ouvidos, por sua vez, colados ao celular do Maikel, que se prepara para o primeiro dia como motoboy na cidade. O toque do aparelho é um funk, Mr. Carta com grave estourado, no último volume. Tomo um susto, enquanto ele já atende: “Tô tentando sair, mas tá tudo parado, chefe. Aqui, na Jabaquara, tudo. Não tem nem como tirar a moto da garagem do prédio.”

O chefe berra no outro lado da linha. Não adianta. Nada se move. Maikel chateia-se um pouco, mas o motivo é outro. Baixaram (o “eles” desta vez, refere-se à vereança da cidade) uma lei que proíbe carona na garupa, e ele já tinha combinado de no fim de tarde tomar uma cerveja com a Keitilin, sua namorada, pra comemorar o trampo. Mas o chefe, aproveitando sua condição de mandatário, via telefone descasca-lhe ordens e reprimendas, avisando que a polícia está de olho e prele “não carregar nada além dos pacotes que eu mandar, ouviu?”

O Maikel tosse com a fumaça do cigarro e desliga o celular – o chefe já se desinteressara dele. Boa-praça e inexpressivo, mora com a mãe convalescente de erisipela no único apartamento térreo. Não se incomoda com os outros em volta. Apenas baixa os olhos e confere uma ou outra função do celular, que correra para comprar em 12 vezes ao saber que tinha um trabalho. Vestido com roupa de chuva plastificada e negra, típica dos motoqueiros, não demonstra angústia, satisfação ou raiva, apenas uma espécie vaga de complacência, com a qual divisa sua touchscreen – como se ali uma paisagem inteira se consolidasse. Como se o menu do seu smartphone lhe tragasse como o cigarro traga Isvandilson, a chatice traga D. Terezinha, a técnica traga Januário. Mas, ao contrário destes, Maikel conseguia deixar-se absorver numa paz que é também vazio. Mais do que com os outros que nos circundavam, naquele momento eu me incomodava mais com ele, por não saber como atingi-lo – por sua impassividade mesmo quando comprimido sob a marquise, via telefone, no trânsito daqui a pouco. Talvez escutando meus pensamentos, ele coloca o fone de ouvido e some de vez sob o capuz.

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Sweat Shop

setembro 19, 2011 at 10:59 am (10 minutos) ()

Miúda, a chinesa cantarola com voz estranhamente grave. Embora o rumor da manufatura sob o chão seja enorme – o porão tomado por máquinas de costurar, bordar, capazes de overlock rapidíssimo e outras façanhas – ela teima em relembrar tons da infância em casa. Mexe os lábios e sente o diafragma. Chamaria a atenção, se alguém se dignasse a levantar a cabeça. Jornada intensa, todos ali afundam o olhar nas operações que as mãos devem realizar com destreza. Caso contrário, o bicho pega.

Há também bolivianos, angolanos, somalis e brasileiros. A chinesa não calcula as horas, encalacradas apenas entre o trabalho e o sono. Há pouca luz, o idioma lá fora é estranho. Dentro, uma babel. Moram ali mesmo, num depósito adaptado ao lado, que já foi mais sujo. O dinheiro aqui é pouco. Pra ela, que é de lá, vale bem mais que o cansaço.

É jovem, pálida e tem varizes. A chinesa está apaixonada. Borda casacos de tecido sintéticos, destes que cortam o vento, semi-esportivos, vendidos aos montes em avenidas cheias de gente. Qualquer cidade de médio porte tem uma delas, visto que o mundo demanda. Mais especificamente, no atual panorama da divisão do trabalho, a chinesa está responsável por imprimir o slogan “Catch Tha Mouse” nas costas dos casacos, de cor negra e gola/mangas vermelhas. Logo abaixo da frase a estampa de um homem musculoso, dragão tatuado no peito desnudo, braços cruzados e luvas de lutador, olhar assassino.

Uma flor enfeita seu rosto. Roxa e amarela, já prestes a secar. A chinesa saiu estes dias e colheu duas ou três, por brincadeira. Está apaixonada por um brasileiro, vizinho de fileira na manufatura têxtil subterrânea. Não entende bem o que fala, ela que do português apenas maneja alguns verbos nos infinitivo e numerais ligados à contagem do salário. Decorou, há pouco, a quantidade mensal de horas trabalhadas: “quatlo-centos”, sorriu para o espelho ao conseguir pronunciar pela primeira vez.

O brasileiro se mexe calmo, parece conduzir a vida com alguma elegância. Magro, moreno, sobrancelhas grossas, antes das têmporas talhadas com precisão. Poderia ser um meio-campista do futebol nos anos 50. Vai com calma, senta-se ereto no banquinho defronte à máquina, antes de começar analisa bem a feição de todos que trabalham a seu lado, suspira bem de leve e se concentra. Concentra-se: não se prostra. Recebe resignado o resultado do fim do mês, sempre desconfiando de seus compatriotas patrões. Ama a vida, percebe-se quando ao fim do dia sobe os degraus do porão.

Todavia, ignora a chinesa. Parece andar noutro plano, ali no porão. Ela, que desajeitada meneia os cabelos quando o vê passar para o café. E sofre. Perde a atenção.

O contramestre, ele sim já percebeu. Boliviano, bufa ao seu lado. Quer resultados. Há portos para abastecer. A chinesa, nervosa, avermelha-se. Confunde as palavras na cabeça, quando pensa no que dizer ao amado. O contramestre passa-lhe rente ao cotovelo. A máquina escreve: “C-A-T-C-H”… Daqui a pouco é o intervalo. Hoje é sexta-feira. São 400 horas/mês. Não consegue fazer as contas na cabeça: haverá ou não folga no sábado? É quase verão.

“H-A-T”…, vai errado o artigo definido.

(O contramestre, quando dorme, sonha com seu próprio porão).

“No, no lo hagas así!”, berra numa língua que ali aprendeu-se a odiar. A chinesinha, sobressaltada. Distante, o brasileiro sorri de leve, conversando no café com os companheiros. Não vê nada ao redor: o intervalo é sagrado.

O rumor das máquinas ensurdece. O casaco está perdido enquanto mercadoria. A frase inglesa perde o sentido desejado. A chinesinha perde a folga. O contramestre arranca-lhe violentamente o produto das mãos. Bufa ao examinar o erro. É baixo, tem os cabelos lisos. Sua mais que todos os outros ali.

Aos poucos tranquiliza-se. A chinesa pensa que é normal que isso aconteça. Afinal, ela tem outras coisas mais importantes na cabeça. A cabeça, sempre baixa, quase anexa à máquina. Desconcentra-se: e daí? O contramestre, fixo nos detalhes do casaco  preenche-se da ideia: aquilo não deve ser desperdiçado. Deixa-se tomar pelo alívio produtivo típico dos administradores. Sejam eles grandes ou pequenos.

Sai sem dizer palavra. O comprador chega às trẽs. Sem titubear, no cubículo envidraçado de onde acredita gerir recursos humanos, dobra o casaco e o empilha junto a centenas de outros.

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Instruções para chover

setembro 14, 2011 at 9:25 pm (10 minutos)

Em frente ao prédio, a rua do centro da cidade, as poças colecionam chuva há algum tempo. As fendas, por sua vez, colecionam poças. Abaixo delas, vitórias-régias tremem de frio.

Há nelas um pouco da calamidade que nos cerca. A cachorra não percebe. Cava bem no meio da rampa de concreto de acesso à garagem. Mesmo com o som difuso dos pingos, pode-se ouvir suas unhas arranhando o concreto. Procura algo enquanto um fio fino de água começa a descer em direção ao subsolo, onde estão os carros.

Ao mesmo tempo, a cachorra pára e me mira através: chega com os olhos à chuva que está atrás. Ao interromper a primeira busca e empreender a segunda, agora com os olhos apertados e distantes, chafurdando na paisagem, percebo que sua perna esquerda traseira mexe involuntária. Eu fixo ali, enquanto a cachorra me atravessa.

Sei entrar pela garagem deste prédio que não é nosso. Chego já após o expediente, embora alguns indivíduos permaneçam aqui, perambulando pelos andares, entre uma reunião e outra. Conhecem-me, mesmo fingindo o contrário. Prefiro ir pelas escadas sempre, temo que o elevador enguiçe comigo dentro e ninguém ouça meus berros. No terceiro andar, rumo ao ático, trombo uma figura sinistra, com chapéu pontiagudo a esconder a calvície. As têmporas afundadas numa fronte que periga submergir,. Olha-me de soslaio, retirando-se de algum aposento para atender o celular na esquina escura do corredor. Nota-se que trama, que planeja, mas não escuta. Chove a cântaros, o ruído torna-lhe impossível compreender seu interlocutor. A ligação é cortada. Ele parece desesperar, percebe-me, enfara-se em seu próprio sobretudo. Some à direita. Sua sombra, projetada na luz amarela, permanece comigo.

Em solidariedade, a cachorra, perna trêmula, também sobe as escadas. Não se pode depreender sua idade, mas o pêlo está úmido e muito maltratado. O focinho cinzento de tanta cidade.

Vamos ao ático.

No último lance de escadas, chega-me aos pés uma torrente de água cada vez mais grossa. Vem túrgida, suja, viscosa. Penso nestes adjetivos todos quando me inclino para tocá-la. Penso em seus antônimos e sua inerente utilidade. A cadela lambe a água, os degraus, minhas botas. Mas o ruído de fundo muda. A metereologia muda. Outra sombra projeta-se de cima sobre nós. Há uma serra rilhando contra material duro. Olho pra cima, um homem de trajes verdes escuros, militares, barba ruiva artificialmente desgrenhada, surpreende-se comigo. Estou no último lance de escada, a cachorra não late, há apenas a possibilidade de luz pela brecha da porta. O homem está nervoso e oprime as próprias arcadas dentárias uma contra a outra.

Empurro-o com força. Não sou bom sem o elemento surpresa. Funciona, pois ele se espanta e impede seu ódio. Voa pelas escadas e me ultrapassa. Não queria nada comigo. Ouço seu tropeção, sua batida contra o portão de ferro da garagem. Machucou-se sem querer.

Ao sairmos, a cachorra cruza abrupta meu caminho, como se precisando chegar antes num ponto decisivo. Pára defronte ao pequeno canteiro de plantas decorativas. Sobre ela a água cai torrencialmente. Ela analisa as poças. Escolhe uma delas e volta a cavar.

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Travessa Ratcliff

agosto 23, 2011 at 4:01 pm (10 minutos)

A Travessa Ratcliff é um belo consolo, um oásis. Curta, entre 50 e 100 metros de extensão, ela é exatamente do tamanho da boemia de Florianópolis. Há até setores próximos, situados à rua João Pinto, mas qualquer um tem claro que algo muito distinto se passa na Travessa. Ela está permeada, ungida, pela substância diferente que a gente fica sempre a procurar por aí.

Está longe de ser perfeita. Mas tem mesas na rua, é feita de lajotas dos tempos antigos da urbanização da cidade, sobre as quais não pesam carros. (Neste aspecto, parece forçar-se a viver ainda naqueles idos.) Tem os irascíveis donos dos três bares, cada qual com seu mal-estar; um garçom estrangeiro e mudo de medo; outro que encarna o espírito de Anfitrião e é adorado por todos – pois, além de receber-nos com efusão, às vezes anima o final das noites com disparates divertidos. Tem um instituto de defesa de direitos humanos, e paredes pintadas em homenagem a sambistas daqui. No andar de cima de um de seus sobrados antigos e geminados, há varandas e janelas de um lugar aberto, porém esfumaçado e com ares de clandestinidade.

Passa por lá gente de todo o tipo – há gente que ainda insiste em classificar isso como “tribos urbanas”. A coisa vai misturada mesmo. Apesar do preço da cerveja galopar assustadoramente na região, vemos uma mistura de classes e origens. Vale lembrar, no entanto, seu passado: está colada à avenida Hercílio Luz, que por muito tempo serviu de demarcação espacial para a segregação étnica e de classe que funda as relações da cidade até hoje.

Dos protestos de 2005 em diante, a travessa tornou-se um lugar para o qual rumavam os manifestantes – para esfriar os ânimos, praticar avaliações relativamente superficiais dos acontecimentos do dia e cometer planejamentos completamente tresloucados para os dias seguintes. Devido a isso, numa de suas esquinas instalou-se uma câmera, destas de segurança “pública” (na real, que defendem interesses privados com dinheiro e logística estatal), que transformam “os espaços públicos das cidades em áreas internas de uma imensa prisão”, como diria Agamben sobre a Europa e que nós, desterrados, tão caninamente importamos.

A travessa Ratcliff (alguns insistem que ela mudou de nome, mas é ocioso adentrar tal disputa) move-se por música. Mais especificamente, tornou-se um importante reduto do samba de Florianópolis, por alguns motivos. O primeiro deles é ser palco do Bom Partido, melhor agremiação de samba desta cidade, há mais de uma dezena de anos na estrada, responsável pela abertura das apresentações na ilha de ícones como Argemiro do Patrocínio, Monarco e Jair do Cavaquinho (todos da Portela) e Xangô da Mangueira, entre muitos outros.

O grupo, além de contar com repertório diferenciado, provocador (por não recorrer só aos clássicos do samba, realizando assim fundamental pedagogia para os não-iniciados), canta muitos sambas daqui. Note-se: Florianópolis tem excelentes compositores, antigos e recentes. Mas precisa-se ter a possibilidade de descobrir. Há algumas gerações a coisa está bem firmada por aqui, embora muitas vezes não atinja tão facilmente o público quanto Jay-Z ou Luan Santanna. Zininho, Marcelo 7 Cordas, Dinho (ex-Bom Partido), Maria Helena, Avez-Vouz da Copa Lord, a magnífica partideira Jandira (Bom Partido), Januário, Celinho da Copa Lord, Elias Marujo, entre muitos outros, são excelentes exemplos da lavra de Florianópolis. Um dos sambas mais bonitos já feito, não só no âmbito de Desterro, é “Vai Amanhecer”, de um compositor precocemente falecido cujo nome não me recordo.

* * *

O “Torresmo à Milanesa”, grupo de formação mais recente, sempre entoa “Vai Amanhecer”. E também diversos outros temas daqui. Eles estão na travessa na sexta à noite, e tem-na deixado coalhada de gente. Dois grandes momentos, com os quais sempre podemos contar:

  • “O Samba na Ilha”, tema que abre o único disco lançado pelo Bom Partido, há muito tempo atrás, interpretado por seu compositor, que nos dá uma aula de geografia local a partir da sociabilidade do samba. (Alguns dos locais citados causam uma nostalgia na gente…) e conta com uma continuação, também interpretada todas as sextas;

  • “Um Ser de Luz”, tema de João Nogueira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, composto em homenagem a Clara Nunes cerca de um mês depois de sua morte. Geralmente, é interpretado por uma intérprete maravilhosa, de voz rouca e olhos rasgados, com veludo, que chega apenas para isso e para “Retalhos de Cetim”, do Benito de Paula. O depoimento do João Nogueira sobre a necessidade deste tema para Clara é um momento bonito, que deve ser conhecido.

Ìamos nos acostumando a encontrar samba e amigos, assim, às sextas e sábados. Mas na semana passada tomamos um susto: o Canto do Noel, palco do samba, teria fechado. Problemas matrimoniais entre os donos, contam as versões, sem aprofundar os fatos. O fato é que a coisa parecia desanimar. Nesta última sexta, após dois dias enfurnados num seminário de estudos sobre aqueles que dominam o mundo atualmente – i.e. Sistema Financeiro Internacional – pela força do hábito fomos até lá para nos embriagar. Chorar as pitangas sobre os títulos da dívida pública e, se fosse possível, traçar os planos da contra-hegemonia. Secretamente, queríamos investigar o destino do samba na travessa. Na chegada, a esquina com a João Pinto (não com a Tiradentes), estava mais vazia, como que esmaecida. Fomos até o final, e descobrimos que o Noel havia reaberto, agora arrendado por jovens talvez mais responsáveis, e que havia horizontes sólidos para a continuidade do samba. Datas já marcadas, coisa e tal. A paz instalou-se. Sentamos e bebemos.

* ** *** *

 Duas pérolas do samba de Floripa, obtidas no fundamental acervo de músicas locais existente na rádio Campeche, podem ser baixadas aqui (outras pérolas tentarei disponibilizar em breve):

 Celinho Copa Lord

Zininho

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Ouvir e organizar a palavra

maio 18, 2011 at 5:32 pm (10 minutos) ()

Na publicação passada, ruminei rápido sobre os desgostos do engajamento político não-institucional, contra-hegemônico, revolucionário. Esse ofício que parece, em momentos de reflexão mais pessimista, algo próximo ao ato voluntário de acordar de manhã e chupar limões aos montes. E, logo em seguida, limpar a boca com as costas das mãos, levantar-se e, com “digna raiva”, se dispor a sorrir. Ando desconfiado disso e prometi a mim mesmo algo como uma retirada estratégica, por tempo indeterminado, para dedicar-me a quaisquer outras coisas.

Não que seja fácil.

Logo em seguida a esta minha decisão, sentei-me com o pessoal da maravilhosa editora Expressão Popular para auxiliá-los a vender seus livros, numa banca instalada em evento universitário. É mais ou menos assim que a iniciativa sobrevive: os autores dispensam os direitos autorais de suas obras, quem vende os livros ou fornece algum tipo de logística não cobra nada. Isso faz com que os livros tenham preços nem altos nem baixos, mas dignos – como todo colaborador da Expressão descobre rápido.

Com esta rede em que se quebram as mediações e na qual abunda a ajuda mútua, a atitude legítima de baixar livros na internet – devido aos preços escorchantes das mercadorias e a argumentação reacionária e violenta dos ideólogos da indústria – vê-se transformada em vontade de que iniciativas como as da Expressão vinguem. (Sobre a postura dos ideólogos do direito autoral, ainda agrilhoados às masmorras da mercantilização da cultura e da informação, ver recente polêmica sobre a proibição do sítio letrasuspdownloads, perseguido por obscura editora gaúcha, em artigo do baixacultura.org).

Entre os inúmeros títulos suculentos expostos, estava um pequeno livro sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Acredito que o único que a editora publicou sobre eles. Escrito pelo Emilio Gennari (que contribui também com a disseminação de outros conhecimentos importantes como a educação popular e a questão palestina contemporânea), a princípio achei que era outro, também de sua autoria, muito difundido na internet, que ajudou a popularizar a luta zapatista – chamava-se “Chiapas – as comunidades zapatistas reescrevem a história”). Mas não. Era o “EZLN-Passos de uma Rebeldia”, de 2008, que cobre um período mais longo da trajetória deste que é o movimento social mais emblemático para compreender como a prática da autonomia demonstrou-se sólida no confronto com o neoliberalismo.

O EZLN é um movimento do qual se fala muito no Brasil – imagino que em outros lugares também – pois ele une, com criatividade raramente vista antes, algumas dimensões importantes para a luta política. Para não nos estendermos muito sobre isso, visto que há inúmeros textos sobre o tema, pode-se enfatizar:

– a articulação entre a situação e os valores e práticas dos povos originários de origem maia na região de Chiapas, estado do sudeste mexicano, com as contribuições da política radical de esquerda;

– o uso não só da palavra e dos meios de comunicação contemporâneos (nomeadamente a internet), mas principalmente a vontade constante de comunicar suas posições, análises, dificuldades, e a forma talentosa e abrangente como consegue fazê-lo;

– a forma como a ideia de uma constante reinvenção das próprias práticas é colocada, a partir de assembléias (no plano político) e soluções materiais, concretas (no plano da produção dos espaços de educação, saúde, produção agrícola, construção de casas, etc.) – oinício do penúltimo capítulo do livro de 2008 de Gennari ilustra muito bem isso;

– o uso da ideia de sociedade civil anti-hegemônica como um espaço que não só resiste como também propõe, que não existe apenas para administrar/fiscalizar o controle social das políticas estatais, mas para reelaborar a vida a partir de uma outra lógica.

Por essas e outras, os zapatistas tornaram-se referência para a formação de militantes anti-capitalistas nos últimos dezessete anos (o levante foi em 1° de janeiro de 1994). Há diversas camadas de apropriação do fenômeno zapatista – desde uma certa idolatria fetichista até a negação de suas estratégias, calcadas num horizontalismo estranho a setores autoritários da esquerda. Eu mesmo conheço bem pouco, embora goste do que leio e vejo sobre eles. O contato com os livros do Gennari são excelentes maneiras de gostar ainda mais.

No”EZLN-Passos de uma Rebeldia”, ele sumariza os eventos vividos pelo EZLN de 1994 a 2006. De toda a trajetória, que é fascinante, não realizarei aqui um “sumário do sumário” – prefiro indicar a leitura do livro inteiro. Gostaria apenas de enfatizar um ponto, presente à época de deflagração de uma das mais interessantes empreitadas dos zapatistas: “A Outra Campanha”, talvez a maneira mais explícita e concreta como elxs expressaram seu rechaço (desconfiança e desprezo seriam termos brandos demais) à política institucional tradicional, misto de conchavos convenientes e autoritarismo. À época (2005), o México vivia os derradeiros momentos do governo do ex-gerente da Coca-Cola Vicente Fox, e os partidos da direita tradicional (PRI – Partido Revolucionário Institucional – e PAN – Partido da Ação Nacional, do atual presidente Felipe Calderón) manobravam para impedir o ascenso nacional do prefeito da cidade do México, Manuel López Obrador, do PRD – Partido da Revolução Democrática. Este partido, representante da “mão esquerda da direita”, na avaliação do EZLN, sempre teve problemas com alternativas anti-institucionalistas, como deixa clara a relação do ex-candidato presidencial Cuathemóc Cárdenas com os zapatistas nos momentos inciais do levante.

Os zapatistas saíam de uma avaliação extensa do primeiro ano de implantação e funcionamento das Juntas de Bom Governo e dos caracóis, espaços de democracia direta e rotativa recentes em seu território (quem foi ao Fórum Social Mundial no início de 2005 lembra dos espaços alternativos chamados “Caracóis”). Concluíram que foi uma construção positiva, uma escolha acertada, embora necessitasse de muitos reparos – como a questão de uma participação mais efetiva das mulheres e também a de uma menor intrusão da estrutura militar do EZLN, verticalizada como qualquer exército, na dinâmica horizontal presente nos espaços de discussão e deliberação políticas, ancorados nos valores tradicionais das comunidades indígenas.

A crítica aos descaminhos da política tradicional e a realidade vivida nos caracóis e Juntas de Bom Governo contribuíram muito para a formulação da “Sexta Declaração da Selva Lacandona”. Esta exalta a necessidade de uma “outra política”, que busque negar e reverter os efeitos arrasadores do neoliberalismo no México a partir da soluções elaboradas “de baixo”, pelos oprimidos por esta fase de intensificação dos efeitos do capitalismo. Esta alternativa, “abaixo e à esquerda”, deve surgir a partir da escuta dos mais diversos grupos identificados com a proposta, culminando na organização de sua palavra, de sua alternativa.

Respeitar a diversidade, mas unificar-se. Escutar, mas para agir. Para negar. Ouvir e organizar. Estes foram motes da “Outra campanha”, contrapartida concreta da Sexta Declaração. O livro, em seu último capítulo, descreve algumas das dificuldades e vicissitudes – a esquerda dita revolucionária não está acostumada a ouvir o outro, mas sim a falar. Acostumada a falar e digredir, esquece-se da urgência do agir. O EZLN penou, mas ao mesmo tempo foi com estes colaboradores que se dispôs a caminhar pelo território mexicano e ouvir, falar, dialogar, organizar. Como terá sido? Como tem sido?

Sei pouco. Mas estas ideias são importantes. Se há pouca brecha para agir, se algumas decepções se acumulam no cotidiano da militância radical, é bom não pensar em desistir. Parar um pouco para ouvir, entender o que companheirxs pensam, reconhecer bem os argumentos da direita política e esmiuçá-los para destrui-los… Compreender a necessidade e a urgência das lutas. Historicizá-las e politizá-las, quando tendem a perder o conteúdo em processos de esvaziamento fetichista. Estender os ouvidos um pouco mais, sair do vozerio que nos circunda em busca de outras falas, distantes temporal e espacialmente. Há algumas possibilidades, talvez cautelosas em demasia, mas importantes para que o canto da sereia da “situação” não passe de nossos ouvidos às nossas bocas rápido demais.

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“Fazer Política”

maio 1, 2011 at 3:32 am (10 minutos)

“Fazer política” é uma expressão que uso para expressar a idéia de atuação em coletivos de esquerda anticapitalista com viés autonomista, aos quais  busco me associar na hora de pensar/agir transformações na realidade. Há gente que caracteriza coisas similares através de noções como “militância” ou “ ativismo” – o que inclusive me parece mais exato. Isto porque a política assim, sem adjetivos, periga amalgamar-se ao senso comum, que a confunde com corrupção, esquemas, malandragens. Ou ainda com o senso comum de uma certa esquerda, de ânimos pálidos ou já arrefecidos, cujos últimos esforços voltam-se para expandir o campo, sob a afirmação de que “tudo é política”. Isto com o intuito de classificar qualquer mísera ação no cotidiano como algo que incide contra a atual configuração da hegemonia. A turma que aboliu sacolinhas de plástico nas compras ou que gere projetos de “responsabilidade sócio-ambiental” que o diga.

Não quero aqui aristocratizar as coisas. Evidentemente, não cabe mais a ideia de estar “a um passo exato adiante das massas – nem junto com elas , nem muito longe delas”. Vanguarda e massa são termos mortos. Digo o que acredito, buscando separar o joio do trigo.

A ideia do “fazer” polemiza a política. Há gente que afirma que o fazer tem somente a ver com o trabalho, com a transformação da natureza, a organização da produção, a materialização de obras que permanecerão no mundo. À seara da política, distinta, pertenceriam a imprevisibilidade, a irreversibilidade, a imaterialidade, a fragilidade. Ao mesmo tempo, seria ela a única capaz de engendrar corpos coletivos e suas respectivas histórias. Tenho críticas a este tipo de visão, que não cabe enumerar aqui.

Na minha opinião, o fazer, poiésis, deve ser estendido a todos os campos da vida, atitude que agregue a capacidade de criação em múltiplas situações – seja de espaços públicos, seja da confecção das refeições diárias. No entanto, nem tudo aí é política. Acredito que muito do político esteja em sua capacidade de estabelecer um conflito legítimo, que busque interpelar e destruir a organização dominante da violência material e simbólica. Destruir a necessidade de manutenção da ordem num determinado momento histórico, denunciando sua conspícua intenção de simplesmente nos varrer para debaixo do tapete, ou nos esmagar a martelo e cutelo.

Acredito também que a política acontece através do dialético processo da práxis, de ação e reflexão intermináveis, porém qualitativamente sucessivos. Enquanto processo, a ação política, transformadora e concreta, instauradora de conflito, guarda a dimensão também da coletividade e da mesmidade – somos diferentes e devemos conviver assim, mas também sofremos as consequências de processos unificadores e aplastadores, que a necessidade de lutar juntos nos possibilita reconhecer. O exemplo,oferecido pelo Sub. Comandante Marcos, do significado da palavra “dor” para diversos setores oprimidos que a reconhecem, a expressam e a rechaçam, sintetiza bem a ideia de como sublinhar apenas a pluralidade não resolve questões candentes à política hoje.

O último aspecto a ressaltar, por ora, é o da formação. Envolver-se em lutas mexe com a cabeça de qualquer um. Algo forte nos leva se meter nisso. Todavia, não leva a todxs, é claro. Há demandas concretas, necessidades que devem ser resolvidas agora, proteladas incessantemente pelos poderes estabelecidos. Há os horizontes e as utopias, que nos levam a mirar longe, a sonhar. Há a necessidade de viver em coletivos que não sejam os de sempre, os da família, da escola, da igreja, do trabalho, etc. Sobre todas estas coisas, a política anti-sistêmica imprimiu milhões de páginas – procedimentos de organização, perfis adequados de militante, manuais de postura, grupos de estudo, análises de conjuntura, planejamentos estratégicos, que pessoas mais ou menos disciplinadas buscaram implementar. Muitxs em seguida abandonaram esta vida, mas guardaram consigo porções de experiência.

Muitxs, no entanto, renegam tudo. Voltam-se contra. Abertamente. Abraçam o capital, visto agora como efetivo demiurgo da sociedade. Talvez se possa dizer: são xs piores de todxs. Há aquelxs que levam consigo a mágoa brutal das promessas de mudanças não cumpridas pelos coletivos, das partenogêneses e posteriores secessões de tendências e grupos políticos, das traições e das expulsões, da mitigação da individualidade em prol da afirmação de alguma religiosidade revolucionária. Alguns começam a desconfiar do tempo perdido, passam a desejar outros fins para os fins de semana, passam a desprezar a inoperância das infindáveis reuniões, do barroco dos discursos, do eruditismo das análises acerca das obras magnas das doutrinas da esquerda. Alguns se formam na universidade e dizem que “caíram na real”, que “a água bateu na bunda e agora não dá mais para brincar”. Alguns constituem família e nisso abre-se uma saída de emergência. Ou, por fim, constatam que a conjuntura hoje é clara e nos mostra o quão tudo isso é supérfluo: “o sistema, parceiro, ganhou”, como filosofaria o capitão Nascimento.

Dito isto, tanto o fazer quanto a política morrem. Acumulam-se frustrações e ceticismo. Não existe nem mesmo a concessão para recuos estratégicos, para períodos mais aprofundados de estudo: há que se superar estas aventuras (geralmente) atribuídas à época da juventude. Quando dito assim, parece até que fazer política era sinônimo de participar de festas intermináveis, como se a Revolução cubana, o maio de 68, a praça Tahrir ou a pichações juvenis na Síria fossem de uma ingenuidade inofensiva ou transitoriedade esperada.

Também passei, passo um pouco por isso. Este texto é uma tentativa de dizer e de resistir. É uma parada pública, simples, curta, para pensar um problema. Para fazê-lo de uma outra forma. Até por que, ao permitirmo-nos olhar em volta, se lembramos da história dos oprimidos escrita incessantemente (parada reflexiva que, se demasiado longa, nos esmigalhará), há sim, muita política para se fazer. Mas por quê esta desconfiança acerca de sua própria natureza surge e quer permanecer?

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