[Pausa para descer o cacete]

março 26, 2011 at 5:01 am (10 minutos)

Confesso: durante anos fui seguidor de segundos cadernos de jornais. Destes que trazem textos críticos e reportagens sobre novas iniciativas ligadas ao campo das artes. Geralmente curtos, são quase peças de divulgação. Se bondosos, poderíamos até considerá-los uma espécie de “serviço de utilidade pública” para aqueles artistas a princípio distantes do reconhecimento de amplas audiências. Mas sabemos que o buraco é mais embaixo, e o quanto a procura por notas na “Ilustrada” ou no falecido “B” do Jornal do Brasil guardam espaço para os modos de influenciar dos grandes meios. A visibilidade que eles supostamente proporcionariam  gera dependência crônica, além de uma usina de releases –  que facilitam o trabalho de críticos que muitas vezes nem têm tempo para fruir direito as obras sobre as quais escrevem.

Agora, com o advento do piratebay.org e outras maravilhas de acesso real à informação produzida no mundo (o que gera uma democracia que é antes de tudo um movimento básico de acesso à cultura e, num plano mais profundo, de humanização) os segundos cadernos são dispensáveis. Mais: eles dependem de nós, que, comunicando-nos, tentamos quebrar as mediações. Nem sempre as pessoas entendem isso, mas esta é a possibilidade colocada.

Nestes dias, por exemplo, tive duas recaídas seguidas. Numa delas, lendo o segundo caderno do Diário Catarinense, encontrei um texto louvando o novo disco da banda estadunidense Superchunk, chamado “Majesty Shredding” (2011). Como de praxe nestes espaços, o cara falava um monte de lugares comuns em sua análise “faixa-a-faixa”, culminando com o clássico: “‘Majesty Shredding’ já é, de longe, um dos cotados para melhor disco de 2011”. (Sim, sim, ainda existem caras pagaos para dizer isso).

Já ouvira falar do Superchunk e, apesar dos clichês da peça publicitária travestida de jornalismo cultural, baixei pra ouvir. Fazia 10 anos que não lançavam nada e (mais um clichê) a espera teria valido a pena. Gosto muito de bandas de rock como Sonic Youth, My Bloody Valentine, Fugazi. Imaginei ter algo a ver. Não.

Era uma merda. Uma choradeira sem fim. Poxa, parecia abertura de série de TV dos EUA, destas com “Cinco adolescentes em busca de um sentido”. Mas, se é verdade que o agrupamento conta com mais de vinte anos de carreira, a imbecilidade juvenil chega a ser medonha. Perderam o bonde da história. Mesmo o uso das microfonias, louvável  na grande maioria dos casos, é tão calculado e higiênico que irrita.  

Portanto, “Majesty Shredding” é algo pelo qual se deve passar longe.

Outra que foi agraciada até com o Grammy de artista do ano ou de revelação do ano – é tanta categoria que pode ela pode ser tmbém a melhor artista latino-mesopotâmica da esquina – é a Esperanza Spalding. Baixista, garota-prodígio, cabelos verticalizados e poses, poses, ela bateu até a expressão de demência coletiva conhecida como Justin Bieber. Seu verbete na wikipédia foi até atacado por fãs alucinadas deste humano imberbe, de poucos anos de idade, mas que já conta com 3 biografias, 11 filmes, 29 caiaques e apenas uma canção.

A Esperanza Spalding é tida como a milésima “nova revelação feminina no jazz”. Confesso que desconheço as anteriores, pois abandonei a prática de leitura de segundos cadernos e uso o twitter para outras coisas. Mas depois de saber que ela superou até a expressão de demência coletiva conhecida como Justin Bieber, pensei que poderia a cura para alguns males. Fui ao Pirate Bay.

E aí vem aquela voz belíssima com aqueles arranjos comportadíssimos. Ai, ai, desperdício, feito para tocar em algum restaurante, destes de “cozinha contemporânea da Lagoa da Conceição”. Feitos para ruminar eternamente naquela eterna planície conhecida como “programação musical da rádio Itapema”. O gosto de chuchu (se é que tal coisa não constitui uma contradição em termos) atravessa o disco inteiro, com aquela roupagem bem-comportada que nenhuma Amy Winehouse é capaz de empunhar.

Spalding tem parentes brasileiros. Canta “Samba em Prelúdio”, de Baden e Vinícius. Cita um daqueles babaueras do Djavan numa música cantada em inglês. E, principalmente, retrabalha “Ponta de Areia”, tema fundamental de Milton Nascimento e Fernando Brant sobre o imaginário de uma modernização perdida me nosso território. O sotaque dela, ao entoar o português, é engraçado, mas não inadequado. Embora não traga nada de mais. A Badi Assad e, claro, o próprio Milton, já fizeram melhor para este tema fantástico do contexto musical do clube da esquina.

Nada disso está muito errado. É sinal dos tempos. Uma roupagem. Não um estilo ou um movimento. Como se fabricada na 25 de março: para estragar. Daqui há pouco outros produtos chegam, a gente é convidado a olhar a vitrine. Como fora aquela Fernanda Porto (alguém lembra?) ao incluir batidas eletrônicas em temas consagrados de Chico e Tom. E muitos outros que devem até hoje vagar por aí.

Fica o desabafo, atitude sempre um tanto constrangedora. Mas há uma nova tarefa. Encarar outros queridinhos da rapaziada descolada, o Arcade Fire, com o incensado “The Suburbs”. Vou parar para escutar, com calma, atenção, coração aberto. Espero não voltar a escrever. Ou fazê-lo sobre a Iara Rennó ou a Juçara Marçal ou o Athaualpa Yupanqui ou Nação Zumbi ou

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Dentro da cabeça esperando o ônibus

março 14, 2011 at 7:21 am (10 minutos) (, )

Vai, eu acredito. Um dia chega. Mas eu tô cansado. Sei, sei. Demora. Deixa qualquer um doido. E ainda por cima tá chovendo. Eu queria deitar. Mas tem um monte de gente sentada bem do meu lado. Na real, tá apertado. Sabe quando você aperta um perna contra a outra, pra caber mais gente? E é incômodo – o banco são duas barras de metal e entre elas tem um espaço. A bunda fica no meio. Fica bem no espaço vazio. Meio que suspensa no ar. Inexplicável, pois é. Assim mesmo. Cara, tem uma poça gigante bem na frente do ponto. Algum filho da puta vai passar em cima d’água pra sacanear. Se fizer, eu taco pedra.

 

Você disse que não vai demorar. Eu tô esperando faz meia hora. Saco. “Quer me foder, me beija”, um intelectual disse. Tem um cara do meu lado escutando música alta. Tá de fone, mas tá tão alta que parece dentro da minha cabeça. Mas aí fica aquele chiado também, por que o fone tá no ouvido dele, não no meu. Porra, o cérebro dele já deve ter derretido.

 

Tem um casal se amando do meu lado. Você disse que não ia demorar. Eles ficam se amassando e rindo. Pô, ela gargalha que nem gárgula. Dá medo. E enjôo – cada um tem um perfume forte, destes meio caros. Perfume assim eu não entendo. Tão querendo esconder o que de mim? Todo mundo tem sovaco e nem por isso um é melhor do que o outro.

 

Chegou. Até que enfim! Bunda quadrada, mas tá de boa. Dá um alívio. Alívio às vezes é pelo motivo errado. Tem um lugar no fundo. Um só. E fica um monte de gente amontoando na catraca. É mole? As janelas todas fechadas. O povo não tem medo de meningite? Eu vou pro fundo. Nem adianta ficar me olhando assim. Esbarro mesmo. Tira essas sacolas. Sai, sai!

 

É meio clichê, mas tem um monte de gente com cara de cu no busão. Pô, com cara de velório ou de quem levou uma surra. Deve doer alguma coisa na vida. Tô sempre reclamando pra mim e pros meus conhecidos, mas olho pro mundo com raiva e desprezo. Com desânimo, não. Dá vontade de enfiar o dedo no nariz e limpar grandão o salão. Será que isso ainda choca? Soltar um peido sonoro. Ou tenho que reclamar bem alto do custo da vida? Todo mundo acha que tá caro, mas quando alguém fala fica chato.

 

Sozinho, eu desvio o olhar. Chego a perder o fôlego. M e dá um desespero. Viro a cara para a janela e pronto.

 

Lá fora tá no auge do lusco-fusco. Garoa e lusco-fusco, a pista engana. Não dá pra ver nada pela janela. Fiquei bem na última fileira de bancos, com 5 assentos juntos. O ônibus faz a curva e o cara tem que se esticar todo para se agarrar num daqueles canos. Quero chegar em casa. Lá fora não dá pra entender nada. Só uma ou outra palavra dos luminosos. Na parede do ônibus tem colado um poema dos “Poetas Livres”. Que merda. Parece aula de português na quinta série. Pô, eu morria de vergonha se fosse parente meu escrevendo estas coisas. Não merece nem parede de banheiro.

 

Engarrafou. O povo começa a suar, desanimado. Tá ficando comum isso por aqui. A maioria diz que faz parte. Querem viaduto. E duplicar. Essas coisas que fazem o bolso de alguém. Vai afundar. Enquanto isso, a gente empaca. Que nem mula. Mas acalma. Daqui a pouco relaxa, estamos perto do ponto do shopping. Metade desce lá. Como é que pode? Um dia eu chego. Vou pra mais longe na cidade, pela pista dupla.

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Submundo Samba

julho 25, 2010 at 5:15 pm (10 minutos)

Na lama

Não um porco

Um outro verso

Solto

Um louco

Pelas calçadas

Aos poucos

Pelas tabelas

Da madrugada

Um samba

Um soco

Um nada

Um louco de pedra

E cara na sarjeta

Sorriso na sujeira

E sono solto

Profundo

Um mundo

Um outro corpo que se encolhe

E volta ao colo

Pedaço de solo

Sem dono

Terra de bamba e de sonho

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Dos zumbidos no caminho

julho 16, 2010 at 8:58 pm (10 minutos)

Para voltar à casa, no momento absurdo do fim da tarde, todo dia deve-se passar por onde os carros param. Por não haver espaço, a fila vai se alongando, se avolumando, os condutores cansam e se voltam mais impetuosos a um espaço reduzidíssimo. Eu posso caminhar: não tenho carro, não sei guiar. Eles de dentro de si, de dentro dos carros, olham para mim – estou desenvolto, eu e meu joelho avariado.

O trecho que caminho tem cerca de um quilômetro. Desemboca no aterro da Baía Sul, que no comecinho da noite é um breu, apenas atravessado um pouco mais adiante por uma via rápida. A Expressa Sul, feita para que os condutores possam sentir-se livres até o afunilamento à frente. Das três ou quatro pistas, magicamente voltamos a uma ou duas – e não há física ou milagre que nos nos faça mover dali.

Na beira do breu, lambendo a franja da baía Sul, pego o ônibus que passa pela saudosa Costeira. Ela é cheia de vida,  através dela sempre tem gente. Parece realmente um bairro, com os moleques de esquina, o povo na padaria, pernas e pernas na calçada. A Costeira é um mundo.

No trajeto de sua via principal, esmagadinha, compriiiiiiida, fazia um frio do cão nesta semana. Foi na quarta. Estava vazia, o que era natural. Não havia fantasmagoria. Ao menos no começo. No ônibus, eu me afundava um pouco no mau-humor – sabe-se o quanto demora para chegar em casa, neste horário, nesta cidade. Aí fica um universo próprio, não tem chacoalhão que me tire do abestalhamento. Mas comecei a escutar um zumbido. Parecia defeito de rádio, msó que dentro da minha cabeça. Olhei pros lados, não havia nada de diferente – cada um no seu mau-humor. O mau-humor é um condomínio, é a salvaguarda de quem desconfia.

O zumbido ficou mais forte. Começou a me irritar, olhei pros lados. O trajeto ia sumindo, o ônibus desesperrado, veloz. Frias as minhas mãos, chegar em casa e guradá-las bem. Olhei pro lado e, entre as casas de múltplas formas, de vez em quando um borrão aceso e uns braços para cima. Senti cheiro de louvor. Não deu outra: de quadra em quadra, está um daqueles famigerados estabelecimentos: ora bares com telões de futebol, ora igrejas de cunho evangélico neopentecostal. Nos dois casos, há muita luz dentro, há audiências cativas. Notei também uma diferença: nas igrejas há sempre um indivíduo à frente, para recepcionar quem chega. Mesmo na velocidade do ônibus, é possível captar os detalhes de como esfrega às mãos ou olha invasivamente para o mundo:  quem será o próximo?

Até o Campeche eu contei uns 10 (bares com TV no futebol ou igrejas, tanto faz). No meio do caminho, como todos os dias fazemos, há a obra do trevo da Seta. Agora, ainda não pronta, é a própria ruína de tudo o que já teve oportunidade de destruir: armações de ferro perfuram a elevação de concreto, cones alaranjados alertando que não podemos seguir nosso já tortuoso caminho diário, necessitando mais uma volta, placas e placas da mesma empreiteira que sempre realiza as grandes obras de infra-estrutura estatal nesta cidade…

Há, neste cenário rápido e abarrotado,  que todos os dias nos tira um pouco mais do tempo – mas do qual, no entanto, também diariamente nos desvencilhamos com facilidade, para retornar com um pouco menos de ímpeto no outro dia – a paisagem especial das casas destruídas. (Há de se lembrar a epidemia de casas destruídas nesta cidade, da principalmente no Sul da Ilha). Estas, no entanto, deliberadamente destruídas, pois obstruíam o fluxo das obras, e o futuro fluxo dos carros que passarão. Algumas estão apenas na estrutura, já alvo de intensas marretadas por parte de operários. Outras, parecem ainda habitadas, têm detalhes como bicicletas, roupas no varal, plantas, casas de cachorro.

O progresso vem como catástrofe, não? Pensei em não ignorar o cenário pela enésima vez. Ignorei o zumbido na minha cabeça. Por que aquelas pessoas tiveram que sair de lá? Não é uma espécie de exílio forçado, um pequeno desterro – para falarmos em termos familiares? Ou é uma coisa que “faz parte”? Não sei de nenhuma manifestação contrária à obra por parte das pessoas ali residentes. Pelo contrário: bem no início das obras, uma cínica faixa do conselho comunitário da região louvava a iniciativa – sem esquecer do cabo eleitoral pago pelo atual prefeito durante o pleito de 2008, que recebeu apenas para ficar parado no trevo,  vestindo um aparato que anunciava: “Dario vai fazer o elevado da seta.”

Lembrei de tudo isso, mas não sei se adianta. A última propaganda em obras viárias no sul da Ilha também louvava a expressa sul. É estranho o amargo na boca.

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Na Ponta

julho 13, 2010 at 3:13 pm (10 minutos)

No sábado estivemos no continente, num lugar de Florianópolis onde há calma e vento. Quando se pensa no continente, este pedaço que – em se tratando de Florianópolis – parece pendurar-se a algo muito menor que si próprio, tudo que nos vem à cabeça é caos e concreto. Como em qualquer lugar, no entanto, há como se encontrar calma. A Ponta do Leal tem um pouco disso.

Fomos para a vivência urbana, que por mais superficial que se saiba ser, é um momento importante. É quando se desloca o olhar e se tenta apreender a situação do outro, que talvez nunca frequentaríamos se não fosse este encontro provocado. Algumas horas, apenas para perceber de leve a disposição dos barracos, a tv de plasma ligada no Uruguai x Alemanha no interior de um deles, o caminho estreito entre o muro e o mar, as palafitas indo ao encontro das ondas, os ranchos de pesca e, algo típico daquela região, as enormes pedras que brotam no caminho – “são da era terciária”, alguém lecionou.

Para além do punhado de horas que passamos ali, talvez algo permaneça. Este é sempre o objetivo das vivências. O que permanece, vale lembrar, nós fazemos sempre questão de carregar conosco. Por algum mecanismo curioso, importante, nunca esquecemos estas lembranças nos bolsos das calças, ao mandarmos para lavar.

O que permaneceu para mim foram dois momentos, sentados no muro à beira da praia. A Ponta do Leal é uma comunidade pequena, com 98 famílais ocupando um espaço exíguo. Como geralmente acontece em Florianópolis, está bem próxima de casas de luxo, no Balneário do Estreito. Cada terreno destes de luxo vale uns 300 mil, nos explica o presidente da associação de pesca, que partilha espaço com pescadores com bem mais dinheiro que ele. “Moro aqui desde 1970 e eles também invadiram. Mas querem que só a gente saia!”. Apenas uma das histórias que foi emendando , nos bons trinta minutos de prosa que levamos com ele sem termos combinado nada.

A outra lembrança tem a ver com as expectativas para as crianças. Há projetos sociais e uma alta possibilidade de conseguirem logo as habitações regularizadas, em forma de prédio. Têm que ser educadas, nos explica o nosso anfitrião, para saber lutar por isso e por mais. Haverá uma diferença entre elas e os mais velhos: estes tiveram não só que lutar, mas que sofrer muito para conseguir algumas vitórias. Os mais novos não terão que passar por isso, mas o eixo fundamental de sua educação deve ser a lembrança do que sofreram os antepassados. Sem o menor traço de sermão, de moral – apenas um projeto claro de socialização.

Alguma semelhança com Walter Benjamin?

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Cartas ao tempo

julho 8, 2010 at 3:45 pm (10 minutos) (, , , )

Nestas noites caretas, em que se fica alucinado diante do computador buscando informação que nunca se irá processar – para usarmos um termo tipicamente industrial – de forma adequada, descobre-se o gigapedia.com

Poderíamos chamar também de “portal do paraíso”, “purgatório” ou “círculo infernal” – depende de como se lida com os mecanismos de seleção de informação. Isto por que há muita coisa no gigapédia, muita coisa que reputamos excelente, que  – nos dizem – vale a pena conhecer. Mas é difícil parar de baixar livros e começar a lê-los.

Uma das preciosidades encontradas foi a correspondência completa do Walter Benjamin (ou Franklin Cascaes, para os ilhéus). Baixei todo animado, até por que sei, através de seus comentadores, que uma série de embriões de suas teses estavam nas correspondências que trocou com gente como Adorno ou Gershom Scholem. Além disso, aposto que a escrita doida do Benjamin está mais radicalizada ainda nas cartas. Empolguei-me, mas depois descobri que o arquivo estava corrompido. Nada, no entanto, que uma busca mais calma na internet não resolva.

Mas daí eu fiquei pensando: escrever cartas! De próprio punho! Quão artesanal parece datilografar hoje em dia. Eu tinha uma Remington, presente do meu avô. Até rascunhei uns poemas juvenis nela, que hoje está no sótão da casa da minha mãe. O telefone e as tecnologias posteriores a assinalam a velocidade conta de tudo, inclusive das manobras epistolares que tanto auxiliaram grandes pensador@s a desenvolverem suas argumentações, em diálogo com companheir@s.

É evidente que tais conversações são impensáveis via correio eletrônico ou twitter. Estes são mais apropriados à experiência de choque que Benjamin já alertava no advento da reprodutibilidade técnica. Esta, no entanto, estava no seio de um fenômeno mais amplo: o tempo vazio da filosofia progressista da modernização que, para além das sistematizações de ideólogos capitalistas ou marxistas vulgares, é a própria carne, sangue e espírito do nosso cotidiano. Com elas, o automatismo, o “sempre-igual”. Crianças de hoje são os nossos próximos autômatos, cujo sabor especificamente contemporâneo prova-se no consumismo, na medicalização, individualismo e outras monstruosidades do mesmo naipe.

Fiquei pensando: escrever cartas. Não com o objetivo tão onipresente hoje de criar um “eu-público-ideal” – como nos proporcionam ferramentas comunicativas como redes sociais, ‘twitteres”‘,  currículos lattes ou até mesmo blogs como esse. O eu-público-ideal que move corações e mentes hoje não desconfia que o fenômeno da intimidade pública – estágio avançado da dicotomia entre esfera social e intimidade pressuposta por Hannah Arendt – nos move de tal jeito hoje que sua grande função parece ser o de nos consumir tempo. Não tanto no espaço da produção, mas sim no do ócio. Num afã infernal, ficamos frenéticos retocando o perfil, incessantes debutantes.

A prática epistolar, manufatura do pensamento, contato singular com apenas um interlocutor, não nos salvará deste contexto. Pelo contrário: pode muito bem ser acusada de aristocratismo, privilégio daquele “que tem tempo”. Mas lembrá-la pode auxiliar ainda mais na autópsia do tempo percebido como momento e qualidade, e não como sequência previsível e vazia. A história, para Benjamin, deveria ser pensada exatamente enquanto a interrupção revolucionária deste tempo, que gira a partir e em direção de si mesmo, exaurindo-nos sem conferir-nos sentido.

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Instruções para tossir

julho 7, 2010 at 11:50 pm (10 minutos) (, , , )

Há dessas coisas que nos acompanham, que a gente repara quase nunca, só quando o cotidiano é tão estranho que nos leva a seus fundamentos. Neste exercício básico e profundo de desatenção, durante uma aula eu percebi a minha tosse. Tossir, sempre foi, sempre esteve. Carrego a tosse sem pigarro há tempos; vem sempre depois da dose de café ou mate. Sempre no inverno. Para ela, os mais diversos diagnósticos. No último, como se alcançasse alguma cura profética, realmente acreditei: sinusite mal-curada. O sintoma mal-curado sempre nos traz um incômodo, a seqüela é um estranho motivo para a ação. Não estou aqui fazendo apologia. A aula estava chata, comecei a calcular quanto faltaria para tossir até descolar a pleura, até esgarçar o sintoma, até o esôfago saltar de tal forma a naturalmente autonomizar-se.

A tosse seca é uma vírgula quando falo frenético. Interrompe meu raciocínio, de forma geralmente adequada, ajustando o compasso entre o pensar rápido demais e a fala atrasada, que se confunde – de vez em quando a fala fica e pensamento vai, que nem dublagem de novela mexicana nos anos 80 (mudou? Ou continua assim?). É um disfemismo quando falo feliz e me agito demais – torna um pouco grotesco este sentimento enorme, o entusiasmo. Sempre acentua alguma dimensão que não controlo ou percebo, embora desconfie que está bem evidente para meus interlocutores.

Fico imaginando que, como ter um coração que bate e um pulmão que respira, posso ter uma garganta que tosse. A tosse enquanto imanência. Um peito que aperta, uma perna que manca, um olho que pisca demais e sem ritmo: das disfunções pequenas faz-se o humano. Dali, quem sabe, nascem pequenas soluções para as situações nas quais o corpo nos trai.

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