Ouvir e organizar a palavra

maio 18, 2011 at 5:32 pm (10 minutos) ()

Na publicação passada, ruminei rápido sobre os desgostos do engajamento político não-institucional, contra-hegemônico, revolucionário. Esse ofício que parece, em momentos de reflexão mais pessimista, algo próximo ao ato voluntário de acordar de manhã e chupar limões aos montes. E, logo em seguida, limpar a boca com as costas das mãos, levantar-se e, com “digna raiva”, se dispor a sorrir. Ando desconfiado disso e prometi a mim mesmo algo como uma retirada estratégica, por tempo indeterminado, para dedicar-me a quaisquer outras coisas.

Não que seja fácil.

Logo em seguida a esta minha decisão, sentei-me com o pessoal da maravilhosa editora Expressão Popular para auxiliá-los a vender seus livros, numa banca instalada em evento universitário. É mais ou menos assim que a iniciativa sobrevive: os autores dispensam os direitos autorais de suas obras, quem vende os livros ou fornece algum tipo de logística não cobra nada. Isso faz com que os livros tenham preços nem altos nem baixos, mas dignos – como todo colaborador da Expressão descobre rápido.

Com esta rede em que se quebram as mediações e na qual abunda a ajuda mútua, a atitude legítima de baixar livros na internet – devido aos preços escorchantes das mercadorias e a argumentação reacionária e violenta dos ideólogos da indústria – vê-se transformada em vontade de que iniciativas como as da Expressão vinguem. (Sobre a postura dos ideólogos do direito autoral, ainda agrilhoados às masmorras da mercantilização da cultura e da informação, ver recente polêmica sobre a proibição do sítio letrasuspdownloads, perseguido por obscura editora gaúcha, em artigo do baixacultura.org).

Entre os inúmeros títulos suculentos expostos, estava um pequeno livro sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Acredito que o único que a editora publicou sobre eles. Escrito pelo Emilio Gennari (que contribui também com a disseminação de outros conhecimentos importantes como a educação popular e a questão palestina contemporânea), a princípio achei que era outro, também de sua autoria, muito difundido na internet, que ajudou a popularizar a luta zapatista – chamava-se “Chiapas – as comunidades zapatistas reescrevem a história”). Mas não. Era o “EZLN-Passos de uma Rebeldia”, de 2008, que cobre um período mais longo da trajetória deste que é o movimento social mais emblemático para compreender como a prática da autonomia demonstrou-se sólida no confronto com o neoliberalismo.

O EZLN é um movimento do qual se fala muito no Brasil – imagino que em outros lugares também – pois ele une, com criatividade raramente vista antes, algumas dimensões importantes para a luta política. Para não nos estendermos muito sobre isso, visto que há inúmeros textos sobre o tema, pode-se enfatizar:

– a articulação entre a situação e os valores e práticas dos povos originários de origem maia na região de Chiapas, estado do sudeste mexicano, com as contribuições da política radical de esquerda;

– o uso não só da palavra e dos meios de comunicação contemporâneos (nomeadamente a internet), mas principalmente a vontade constante de comunicar suas posições, análises, dificuldades, e a forma talentosa e abrangente como consegue fazê-lo;

– a forma como a ideia de uma constante reinvenção das próprias práticas é colocada, a partir de assembléias (no plano político) e soluções materiais, concretas (no plano da produção dos espaços de educação, saúde, produção agrícola, construção de casas, etc.) – oinício do penúltimo capítulo do livro de 2008 de Gennari ilustra muito bem isso;

– o uso da ideia de sociedade civil anti-hegemônica como um espaço que não só resiste como também propõe, que não existe apenas para administrar/fiscalizar o controle social das políticas estatais, mas para reelaborar a vida a partir de uma outra lógica.

Por essas e outras, os zapatistas tornaram-se referência para a formação de militantes anti-capitalistas nos últimos dezessete anos (o levante foi em 1° de janeiro de 1994). Há diversas camadas de apropriação do fenômeno zapatista – desde uma certa idolatria fetichista até a negação de suas estratégias, calcadas num horizontalismo estranho a setores autoritários da esquerda. Eu mesmo conheço bem pouco, embora goste do que leio e vejo sobre eles. O contato com os livros do Gennari são excelentes maneiras de gostar ainda mais.

No”EZLN-Passos de uma Rebeldia”, ele sumariza os eventos vividos pelo EZLN de 1994 a 2006. De toda a trajetória, que é fascinante, não realizarei aqui um “sumário do sumário” – prefiro indicar a leitura do livro inteiro. Gostaria apenas de enfatizar um ponto, presente à época de deflagração de uma das mais interessantes empreitadas dos zapatistas: “A Outra Campanha”, talvez a maneira mais explícita e concreta como elxs expressaram seu rechaço (desconfiança e desprezo seriam termos brandos demais) à política institucional tradicional, misto de conchavos convenientes e autoritarismo. À época (2005), o México vivia os derradeiros momentos do governo do ex-gerente da Coca-Cola Vicente Fox, e os partidos da direita tradicional (PRI – Partido Revolucionário Institucional – e PAN – Partido da Ação Nacional, do atual presidente Felipe Calderón) manobravam para impedir o ascenso nacional do prefeito da cidade do México, Manuel López Obrador, do PRD – Partido da Revolução Democrática. Este partido, representante da “mão esquerda da direita”, na avaliação do EZLN, sempre teve problemas com alternativas anti-institucionalistas, como deixa clara a relação do ex-candidato presidencial Cuathemóc Cárdenas com os zapatistas nos momentos inciais do levante.

Os zapatistas saíam de uma avaliação extensa do primeiro ano de implantação e funcionamento das Juntas de Bom Governo e dos caracóis, espaços de democracia direta e rotativa recentes em seu território (quem foi ao Fórum Social Mundial no início de 2005 lembra dos espaços alternativos chamados “Caracóis”). Concluíram que foi uma construção positiva, uma escolha acertada, embora necessitasse de muitos reparos – como a questão de uma participação mais efetiva das mulheres e também a de uma menor intrusão da estrutura militar do EZLN, verticalizada como qualquer exército, na dinâmica horizontal presente nos espaços de discussão e deliberação políticas, ancorados nos valores tradicionais das comunidades indígenas.

A crítica aos descaminhos da política tradicional e a realidade vivida nos caracóis e Juntas de Bom Governo contribuíram muito para a formulação da “Sexta Declaração da Selva Lacandona”. Esta exalta a necessidade de uma “outra política”, que busque negar e reverter os efeitos arrasadores do neoliberalismo no México a partir da soluções elaboradas “de baixo”, pelos oprimidos por esta fase de intensificação dos efeitos do capitalismo. Esta alternativa, “abaixo e à esquerda”, deve surgir a partir da escuta dos mais diversos grupos identificados com a proposta, culminando na organização de sua palavra, de sua alternativa.

Respeitar a diversidade, mas unificar-se. Escutar, mas para agir. Para negar. Ouvir e organizar. Estes foram motes da “Outra campanha”, contrapartida concreta da Sexta Declaração. O livro, em seu último capítulo, descreve algumas das dificuldades e vicissitudes – a esquerda dita revolucionária não está acostumada a ouvir o outro, mas sim a falar. Acostumada a falar e digredir, esquece-se da urgência do agir. O EZLN penou, mas ao mesmo tempo foi com estes colaboradores que se dispôs a caminhar pelo território mexicano e ouvir, falar, dialogar, organizar. Como terá sido? Como tem sido?

Sei pouco. Mas estas ideias são importantes. Se há pouca brecha para agir, se algumas decepções se acumulam no cotidiano da militância radical, é bom não pensar em desistir. Parar um pouco para ouvir, entender o que companheirxs pensam, reconhecer bem os argumentos da direita política e esmiuçá-los para destrui-los… Compreender a necessidade e a urgência das lutas. Historicizá-las e politizá-las, quando tendem a perder o conteúdo em processos de esvaziamento fetichista. Estender os ouvidos um pouco mais, sair do vozerio que nos circunda em busca de outras falas, distantes temporal e espacialmente. Há algumas possibilidades, talvez cautelosas em demasia, mas importantes para que o canto da sereia da “situação” não passe de nossos ouvidos às nossas bocas rápido demais.

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“Fazer Política”

maio 1, 2011 at 3:32 am (10 minutos)

“Fazer política” é uma expressão que uso para expressar a idéia de atuação em coletivos de esquerda anticapitalista com viés autonomista, aos quais  busco me associar na hora de pensar/agir transformações na realidade. Há gente que caracteriza coisas similares através de noções como “militância” ou “ ativismo” – o que inclusive me parece mais exato. Isto porque a política assim, sem adjetivos, periga amalgamar-se ao senso comum, que a confunde com corrupção, esquemas, malandragens. Ou ainda com o senso comum de uma certa esquerda, de ânimos pálidos ou já arrefecidos, cujos últimos esforços voltam-se para expandir o campo, sob a afirmação de que “tudo é política”. Isto com o intuito de classificar qualquer mísera ação no cotidiano como algo que incide contra a atual configuração da hegemonia. A turma que aboliu sacolinhas de plástico nas compras ou que gere projetos de “responsabilidade sócio-ambiental” que o diga.

Não quero aqui aristocratizar as coisas. Evidentemente, não cabe mais a ideia de estar “a um passo exato adiante das massas – nem junto com elas , nem muito longe delas”. Vanguarda e massa são termos mortos. Digo o que acredito, buscando separar o joio do trigo.

A ideia do “fazer” polemiza a política. Há gente que afirma que o fazer tem somente a ver com o trabalho, com a transformação da natureza, a organização da produção, a materialização de obras que permanecerão no mundo. À seara da política, distinta, pertenceriam a imprevisibilidade, a irreversibilidade, a imaterialidade, a fragilidade. Ao mesmo tempo, seria ela a única capaz de engendrar corpos coletivos e suas respectivas histórias. Tenho críticas a este tipo de visão, que não cabe enumerar aqui.

Na minha opinião, o fazer, poiésis, deve ser estendido a todos os campos da vida, atitude que agregue a capacidade de criação em múltiplas situações – seja de espaços públicos, seja da confecção das refeições diárias. No entanto, nem tudo aí é política. Acredito que muito do político esteja em sua capacidade de estabelecer um conflito legítimo, que busque interpelar e destruir a organização dominante da violência material e simbólica. Destruir a necessidade de manutenção da ordem num determinado momento histórico, denunciando sua conspícua intenção de simplesmente nos varrer para debaixo do tapete, ou nos esmagar a martelo e cutelo.

Acredito também que a política acontece através do dialético processo da práxis, de ação e reflexão intermináveis, porém qualitativamente sucessivos. Enquanto processo, a ação política, transformadora e concreta, instauradora de conflito, guarda a dimensão também da coletividade e da mesmidade – somos diferentes e devemos conviver assim, mas também sofremos as consequências de processos unificadores e aplastadores, que a necessidade de lutar juntos nos possibilita reconhecer. O exemplo,oferecido pelo Sub. Comandante Marcos, do significado da palavra “dor” para diversos setores oprimidos que a reconhecem, a expressam e a rechaçam, sintetiza bem a ideia de como sublinhar apenas a pluralidade não resolve questões candentes à política hoje.

O último aspecto a ressaltar, por ora, é o da formação. Envolver-se em lutas mexe com a cabeça de qualquer um. Algo forte nos leva se meter nisso. Todavia, não leva a todxs, é claro. Há demandas concretas, necessidades que devem ser resolvidas agora, proteladas incessantemente pelos poderes estabelecidos. Há os horizontes e as utopias, que nos levam a mirar longe, a sonhar. Há a necessidade de viver em coletivos que não sejam os de sempre, os da família, da escola, da igreja, do trabalho, etc. Sobre todas estas coisas, a política anti-sistêmica imprimiu milhões de páginas – procedimentos de organização, perfis adequados de militante, manuais de postura, grupos de estudo, análises de conjuntura, planejamentos estratégicos, que pessoas mais ou menos disciplinadas buscaram implementar. Muitxs em seguida abandonaram esta vida, mas guardaram consigo porções de experiência.

Muitxs, no entanto, renegam tudo. Voltam-se contra. Abertamente. Abraçam o capital, visto agora como efetivo demiurgo da sociedade. Talvez se possa dizer: são xs piores de todxs. Há aquelxs que levam consigo a mágoa brutal das promessas de mudanças não cumpridas pelos coletivos, das partenogêneses e posteriores secessões de tendências e grupos políticos, das traições e das expulsões, da mitigação da individualidade em prol da afirmação de alguma religiosidade revolucionária. Alguns começam a desconfiar do tempo perdido, passam a desejar outros fins para os fins de semana, passam a desprezar a inoperância das infindáveis reuniões, do barroco dos discursos, do eruditismo das análises acerca das obras magnas das doutrinas da esquerda. Alguns se formam na universidade e dizem que “caíram na real”, que “a água bateu na bunda e agora não dá mais para brincar”. Alguns constituem família e nisso abre-se uma saída de emergência. Ou, por fim, constatam que a conjuntura hoje é clara e nos mostra o quão tudo isso é supérfluo: “o sistema, parceiro, ganhou”, como filosofaria o capitão Nascimento.

Dito isto, tanto o fazer quanto a política morrem. Acumulam-se frustrações e ceticismo. Não existe nem mesmo a concessão para recuos estratégicos, para períodos mais aprofundados de estudo: há que se superar estas aventuras (geralmente) atribuídas à época da juventude. Quando dito assim, parece até que fazer política era sinônimo de participar de festas intermináveis, como se a Revolução cubana, o maio de 68, a praça Tahrir ou a pichações juvenis na Síria fossem de uma ingenuidade inofensiva ou transitoriedade esperada.

Também passei, passo um pouco por isso. Este texto é uma tentativa de dizer e de resistir. É uma parada pública, simples, curta, para pensar um problema. Para fazê-lo de uma outra forma. Até por que, ao permitirmo-nos olhar em volta, se lembramos da história dos oprimidos escrita incessantemente (parada reflexiva que, se demasiado longa, nos esmigalhará), há sim, muita política para se fazer. Mas por quê esta desconfiança acerca de sua própria natureza surge e quer permanecer?

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